O bem jurídico protegido nos delitos sexuais (ou formas de controle da sexualidade)

Historicamente, o Direito penal brasileiro, a exemplo da quase totalidade das legislações de outros países, sempre deu tratamento diferenciado à sexualidade feminina, dela exigindo mais e maiores qualificativos(1).

A legislação que trata dos crimes sexuais (aliás, impropriamente ainda denominados crimes contra os costumes) data de 1940, época em que entrou em vigor o ainda vigente Código Penal(2).

Dado seu caráter vetusto, é patente a falta de sintonia entre o que se encontra positivado e os costumes sociais, levando a que muitos dos tipos que não mais constituem condutas reprovadas pela sociedade ainda permaneçam, ao menos formalmente, fazendo parte do repertório dos delitos sexuais. Serve como exemplo: casa de prostituição(3).

Além de uma série de anacronismos, a legislação que trata dos crimes sexuais também apresenta problemas em relação ao princípio da proporcionalidade. Uma comparação entre as sanções previstas para os delitos sexuais e outras, principalmente aquelas cominadas para os patrimoniais, dá-nos conta de que estes são reprimidos muito mais duramente que aqueles.

É o que ocorre, a título de ilustração, com o estupro(4) e com o roubo(5), quando resulta morte da vítima. Em relação ao primeiro, a sanção varia de 12 a 25 anos; concernentemente ao outro, as penas encontram-se fixadas entre os limites de 20 e 30 anos. Desproporcionais, portanto.

O Anteprojeto de reforma da parte especial, que se encontra no Congresso Nacional desde 1999, trouxe uma significativa alteração, ao substituir a terminologia Crimes contra os costumes encontrada no Código Penal por Crimes contra a dignidade sexual.

Poderia, entretanto, ter avançado mais, deslocando todos os tipos penais que protegem a liberdade sexual para o Título que trata dos Crimes contra a pessoa (Título I), já que é ela (pessoa) que sofre a violação da sua liberdade sexual. Aliás, é a partir da percepção de qual seja o bem jurídico protegido nos crimes sexuais que se poderá perceber o quanto ainda temos que avançar sobre o tema.

O fato de os delitos sexuais encontrarem-se no Título VI do Código Penal (Crimes contra os costumes) leva a que os doutrinadores se refiram ao bem jurídico destes crimes como sendo os costumes.

Quando, entretanto, se analisa cada um dos inúmeros tipos penais encontrados no citado Título, o bem jurídico apontado sofre algumas alterações. Em muitos casos, em correlação ou não com a liberdade sexual, aparecem outros bens jurídicos, como moralidade sexual e bons costumes.

É o que acontece em relação aos crimes estabelecidos no Capítulo V (lenocínio(6) e tráfico internacional de pessoas(7)), cujo bem jurídico apontado pela maioria da doutrina é a moral sexual pública.

No tráfico de pessoas, o bem protegido é ainda mais detalhado, predominando o entendimento de que a tutela neste crime dirige-se à moral sexual pública internacional.

Para Iara Ilgenfritz da Silva, a moral pública sexual, “num sentido amplo, é a relação que tem a vida sexual com as normas morais. Cada sociedade elege normas morais que deverão ser acatadas pelos seus membros.

São normas determinadas pelas necessidades e conveniências do próprio grupo. Então, em sentido mais restrito, a moralidade pública é representada por um conjunto de normas que ditam o comportamento a ser observado pela sociedade, nos domínios da sexualidade.

Neste sentido, “a consciência ética de um povo em determinado momento’ estabelece a compreensão do que para ele representa o bem e o mal, o honesto e o desonesto, e sobre isso dita suas normas de conduta, no plano sexual.”(8).

Trata-se, portanto, de conceito de acentuada contingência, e como tal não pode ser objeto de norma incriminadora, por não se coadunar com o preceito de Direito penal que obriga a que a criminalização das condutas seja realizada de forma a não deixar dúvidas quanto ao seu conteúdo (princípio da taxatividade).

Uma análise consentânea com o Direito penal constitucional não mais permite que um tal bem jurídic,o (costumes) possa ser objeto de tutela penal. Representa característica comum às constituições de cunho democrático o não albergar disposições que versem sobre questões de ordem moral.

Um Estado de Direito pressupõe o respeito às opções de vida de cada pessoa, sem se prestar a perseguir concepções ideológicas, ou privilegiar pregações religiosas ou moralistas.

Nem mesmo seria legítima uma sua atuação no sentido de aplicar corretivos morais, por meio da autoridade, a pessoas adultas, ainda que suas opções não sejam de bom trânsito nos costumes estabelecidos. As condutas meramente imorais não podem se constituir, portanto, em objeto de tutela penal.

Estão acordes Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangelli: “Sob nenhum ponto de vista a moral em sentido estrito pode ser considerada um bem jurídico. (…) A moral é questão eminentemente individual e o direito não pode ir além de possibilitá-la, mas de modo algum tratar de impô-la, o que, por outro lado, seria irrealizável.”(9).

A criminalização de condutas cujo conteúdo seja eminentemente moral somente pode ocorrer nas situações em que outros valores fundamentais para a ordem social ou individual sejam objetivamente lesados com a sua prática.

As relações sociais estabelecem códigos morais, mas eles não se consubstanciam em uma estrutura a ser protegida em si mesma, e jamais emprestaria licença política para intervenção do Estado em procedimentos pessoais.

Em todos os delitos em que a liberdade sexual não está em jogo, como é o caso do tipo penal “casa de prostituição” (CP, art. 229), percebe-se nitidamente que a punição se dirige a um comportamento que (à época) se tem por impróprio, indigno, e não à lesão de um bem jurídico. O dispositivo em apreço viola, portanto, o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos.

Ao Direito penal é concedida a difícil tarefa de proteger bens jurídicos. “Sempre que a lei criminal invade as esferas da moralidade privada e do bem-estar social, ela excede as suas limitações, sendo esta expansão sem garantia, ineficaz, dispendiosa e criminógena, razão pela qual em lugar de contribuir para solucionar certos conflitos, agrava-os mais ainda, produzindo, contrariamente, maiores e mais graves situações delitivas.”(10).

A delimitação das situações que podem e devem ser reguladas pelo Direito decorre, ainda, do princípio da intervenção mínima, pelo qual a atuação do Estado deve se restringir às situações que comprometam a convivência em comum.

Em um Estado democrático, pluralista e secularizado a pena somente pode ser vista como uma necessidade social, o que é limite à utilização do arsenal punitivo.

O Direito penal, neste contexto limitador, há que se pautar pela função de proteção de bens jurídicos, deixando ao alvedrio individual todas as opções de comportamento que não lesem nem exponham a perigo bens que alcancem tal estatuto.

Uma tal compreensão se traduziria em atitude libertária e igualitária. Restringir o bem jurídico dos delitos sexuais à liberdade sexual (afastando-se, portanto, a tutela da moralidade sexual) é atitude libertária porque permite que se deixe de imprimir uma constante vigilância aos comportamentos sexuais, possibilitando que cada um estabeleça o que lhe for próprio, sempre, é claro, que tal escolha não represente uma ofensa à liberdade sexual do outro.

É, também, atitude igualitária, já que a imposição de comportamento antes referida dirige-se principal e fatalmente à mulher. Obstaculizando-se que a moral vigente seja imposta e usada como controle do comportamento feminino, estar-se-ia colaborando para a diminuição dos níveis de desigualdade (ainda) existentes (e de elevada proporção) entre os sexos.

Notas:

(1) O Código Criminal de 1830 distinguia a pena do estupro de conformidade com a qualidade moral do sujeito passivo. Assim, quando o crime fosse praticado contra mulher honesta era prevista a pena de prisão de tr,ês a doze anos. Em se tratando de prostituta, a sanção tornava-se bem mais branda: prisão de um mês a dois anos.

(2) De lá para cá se registra somente duas alterações de relevo: 1.ª) Lei 10.224/01, que criou o tipo penal de assédio sexual; 2.ª) Lei 11.106/05, na qual se destaca: (a) exclusão da categoria mulher honesta; (b) descriminalização do tipo penal de sedução; (c) descriminalização do tipo penal do rapto consensual; (d) exclusão do aumento de pena em razão do agente ser casado; e) ampliação do delito de trafico internacional, que “de mulheres” passou a ser “de pessoas”; (e) criação da figura do tráfico de pessoas interno; (f) revogação das causas de exclusão da punibilidade referentes ao casamento da ofendida e ao casamento da vítima com terceiro.

(3) Art. 229. Manter, por sua conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: Pena reclusão, de dois a cinco anos, e multa. Recentemente o STJ, julgando recurso do Ministério Público contra decisão do TJ-RS que absolvera três acusados de manter casa de prostituição, entendeu de reformar a decisão, fundamentando no argumento de que “o fato de haver tolerância ou indiferença na repressão criminal não significa que a conduta não está tipificada no Código Penal.” (REsp 820.406/RS)

(4) Art. 213. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena reclusão, de seis a dez anos.

(5) Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência.

(6) Art. 227. Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem: Pena reclusão, de um a três anos.

(7) Art. 231. Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha a exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro: Pena reclusão, de três a oito anos, e multa.

(8) SILVA, Iara Ilgenfritz da. Direito ou punição?: representação da sexualidade feminina no Direito penal. v. 30. Porto Alegre : Movimento, 1985. p. 60.

(9) Manual de Direito penal brasileiro: parte geral. 7.ª ed. São Paulo : RT, 2007. p. 401-402.

(10) QUEIROZ, Paulo de Souza. Do caráter subsidiário do Direito penal. Belo Horizonte : Del Rey, 1998. p. 112.

Alice Bianchini é doutora em Direito Penal pela PUC/SP. Presidente do Ipan (Instituto Panamericano de Política Criminal e Coordenadora dos Cursos de Especialização TeleVirtuais da Uniderp/Rede LFG.

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