Nova Lei de Tóxicos ­ II

Da conduta para consumo pessoal

Há muitas inverdades ditas sobre a nova lei de tóxico, especialmente em relação ao tratamento dado ao usuário, inclusive por pessoas que não poderiam desconhecer as previsões desta norma, como por exemplo, a manifestação do Deputado Federal, Fernando Gabeira, em matéria publicada neste Jornal, onde o parlamentar reclama que esta lei obriga o usuário a submeter-se a tratamento para se livrar do vício, o que não é verdade, haja vista que este diploma legal apenas determina que o Poder Púbico disponibilize o tratamento, sem fazer qualquer previsão no sentido de que ele seria coercitivo. Ou o jornalista escreveu o que este parlamentar não disse, ou ele votou a lei sem tê-la lido (O Estado do Paraná, circulação de 3.9.2006, p. 6).

Também, diversamente do que temos lido e ouvido sobre as condutas de aquisição, guarda, cultivo, etc., para uso pessoal, a nova lei não descriminalizou a conduta visando o consumo pessoal de drogas.

Ao contrário, manteve a previsão da aplicação de sanções penais para estas modalidades de condutas infracionais, sendo elas: a) advertência sobre os efeitos das drogas; b) prestação de serviços à comunidade; e, c) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativa. Não sendo cumpridas estas sanções, a omissão pode importar na aplicação de ?admoestação verbal? e ?multa?, num mínimo de 40 (quarenta) e num máximo de 100 (cem) dias-multa, no valor de um trinta avos até 3 (três) vezes o valor do maior salário mínimo vigente da data do fato (art. 28, inciso I, II e III, § 6.º, e art. 29).

Também não resta menor dúvida que efetivamente esta norma continua criminalizando estas modalidades de condutas quando previu no artigo 48, § 1.º, que ?o agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais.?

Ora, se houvesse a descriminalização não haveria processo e nem julgamento, sendo este mais um fator a ensejar conclusão no sentido de que as condutas visando o consumo de drogas continuam criminalizadas.

Assim, na hipótese de concurso de infração de conduta visando o consumo pessoal, e outras contempladas na lei em comento, será competente para processar e julgar aquela infração o juízo que tiver competente para estas, porém deverá fazê-lo segundo os regramentos previstos para os feitos relacionados com consumo pessoal, inclusive no que respeita a aplicação da sanção.

Para esta modalidade de condutas a norma reza que ?não se imporá prisão em flagrante?, ressaltando que o autor do fato será ?imediatamente encaminhado ao juízo competente? ou, na falta deste, assumirá perante a autoridade policial o ?compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários? (art. 48, § 2.º).

Veja-se que se de um lado a norma diz que não se imporá a prisão em flagrante, por outro lado ela diz que o infrator será imediatamente encaminhado perante a autoridade competente.

Esta previsão importa na interpretação da norma no sentido de que apenas não haverá a lavratura do auto de prisão em flagrante, nos termos previstos no Código de Processo Penal, mas de qualquer forma o infrator desta modalidade de conduta será capturado e conduzido coercetivamente até a autoridade competente, inclusive algemado, se necessário, e assim entender a autoridade policial autora da captura.

Novamente nos deparamos diante de mais uma circunstância que constata de forma inequívoca a inexistência de descriminalização destas modalidades de condutas.

Pela previsão legal o infrator seria encaminhado diretamente ao juízo competente, o mesmo que o fez a Lei n.º 9.099/95, entretanto, tal qual ocorreu com esta lei que neste particular ficou apenas no ?papel?, haja vista que passados mais de dez anos não se implementou juízo de plantão para atender esta modalidade de ocorrência, não temos dúvidas de que as infrações ora em análise cairão na mesma vala, ficando neste aspecto letra morta.

Assim, na prática somente restará a segunda hipótese, que é a do infrator ser encaminhado perante a autoridade policial competente, onde assumirá compromisso de comparecer ao juízo, após a lavratura do termo circunstanciado (art. 48, § 3.º).

Aqui surge uma nova complicação caso seja mantida a atual sistemática atrás indicada, a qual ao invés do processamento imediato do feito nos termos previsto na Lei n.º 9.099/95, apenas toma o compromisso do indicado, nas hipóteses em que este se recusar a assumir tal encargo.

Isto porque, a nova norma prevê que ?não se imporá prisão em flagrante? (art. 48, § 2.º), sendo ?vedada a detenção do agente? (art. 48, § 3.º).

Neste caso, o que fará a autoridade policial?

Pensamos que a única alternativa que lhe restará será a elaboração do termo circunstanciado, realizando exame de corpo de delito no agente, se for o caso, e após o liberará, sob pena de cometimento de crime de abuso de autoridade (Lei n.º 4.898/65, artigo 4.º, letra ?a?). Veja-se que em qualquer hipótese o infrator não poderá ser colocado no cárcere, devendo aguardar os procedimentos em local livre.

Também a previsão no sentido de que ?o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena prevista no art. 28 desta Lei, a ser especificada na proposta? (art. 48, § 5.º), na prática não terá eficácia, haja vista que não havendo juizado especial de plantão, também não haverá Ministério Público plantonista.

Novamente, mais um motivo para concluirmos que não houve descriminalização desta modalidade de conduta, haja vista que expressamente a norma prevê aplicação de pena, sendo esta incompatível com aquela.

Voltando ao procedimento a ser adotado, verifica-se que o atrás citado dispositivo legal expressamente deixa consignado que para estas hipóteses se aplicam as regras do artigo 76, da Lei n.º 9.099/95.

Assim, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público apresentará proposta com aplicação de uma das três modalidades de sanções atrás indicadas e que estão previstas no artigo 28, incisos I a III.

Quanto a este aspecto é importante observar que para esta modalidade de infração penal não se aplica a vedação prevista no artigo 76, § 2.º, da Lei n.º 9.099/95, haja vista que a nova lei de tóxicos não fez esta restrição.

Assim, independentemente da condição do acusado infrator ser reincidente, de maus antecedentes, ter recebido esta mesma modalidade de benefício anteriormente, etc., tem direito subjetivo à proposta atrás indicada.

É interessante observar que o representante do Ministério Público, para esta modalidade de crimes, não tem outra alternativa que não a de apresentar a proposta, porquanto, caso não a apresente, não poderá processar o acusado infrator, porquanto, a lei somente lhe autoriza o oferecimento de denúncia caso o acusado rejeite a proposição transativa. (art. 77, caput, da Lei n.º 9.099/95).

Não aceita a proposta de transação pelo acusado o parquet oferecerá denúncia, caso não haja necessidade de diligências imprescindíveis, passando o processo a tramitar segundo os regramentos previstos no art. 77 e seguinte da Lei n.º 9.099/95.

O processo seguira nos moldes dos delitos de pequeno potencial ofensivo, com citação do acusado, quando não estiver presente no momento do oferecimento da denúncia, designação de audiência de instrução e julgamento, com nova tentativa de conciliação (visando a aceitação pelo acusado da proposta do Ministério Público), apresentação de defesa do acusado, recebimento de denúncia, se for o caso, oitiva das testemunhas da acusação, da defesa e interrogatório do agente, sempre neste seqüência, com posterior debates orais e finalmente a prolação de sentença.

Para julgamento desta modalidade de ilícito penal aplicam-se todas as regras em relação a outros crimes, relativamente a materialidade e autoria do crime.

É importante observar que o julgador somente poderá aplicar uma das três sanções previstas para esta modalidade de infração, conforme atrás indicamos, não podendo delas fugir, porquanto, não há previsão legal para tanto, ficando engessado pelo princípio nullum crimen, nulla poena sine lege.

Entendemos que somente é possível a aplicação de uma destes sanções, porque a lei em estudo não previu a possibilidade de cumulação, ainda que o acusado seja reincidente ou portador de outros defeitos que poderiam aconselhar dita cumulação.

Veja-se que o julgador não pode aplicar outra modalidade de sanção, devendo optar por uma destas, sempre fundamentando a escolha, especialmente quando deixar de aplicar a ?advertência sobre os efeitos da droga? que é mais favorável em relação às outras duas.

Portanto, nas hipóteses em que o agente não aceitar a proposta ofertada pelo Ministério Público, terá como prejuízo unicamente o fato de que não poderá pleitear a escolha de uma destas três modalidades de sanção, ficando ao arbítrio motivado do julgador em escolhê-la.

Neste particular cabe uma crítica ao legislador por haver estabelecido unicamente estas três modalidades de sanção, sem dar outra opção ao julgador, para no caso concreto, aplicar modalidade de pena diversa, que no caso concreto poderia ser mais vantajoso para o acusado e para o Estado.

Em muitos casos não é aconselhável que o acusado aceite a proposta do Ministério Público, especialmente quando não se conformar com a imputação, porquanto caso assim haja, ficará alijado deste benefício na hipótese de cometer outra infração penal considerada de pequeno potencial ofensivo, porque tal benesse não pode ser aplicada duas vezes ao mesmo infrator, salvo nos delitos de tóxicos para consumo pessoal.

Jorge Vicente Silva é advogado, professor de Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas e da Escola Superior da Advocacia da OABPR, pós-graduado em Direito Processual Penal pela PUC/PR, autor de diversos livros publicados pela Editora Juruá, estando no prelo, a obra Tóxicos – Manual Prático Comentários à Lei n.º 11.343/06. E-mail: jorgevicentesilva@jorgevicentesilva.com.br; advocacia@jorgevicentesilva.com.br

Site: jorgevicentesilva.com.br

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