Não apenas descaso

Ao realizar uma visita às vítimas das enchentes de Teresina e outras áreas castigadas do Nordeste, o presidente Lula desancou o verbo no poder público. “Eu resolvi fazer esta visita aqui, em Juazeiro e Petrolina, para dizer que vocês, como outros tantos milhões de brasileiros, são vítimas do descaso que o poder público historicamente tem em relação ao povo pobre do nosso País”, disse o presidente.

Os desabrigados receberam a promessa de que o governo vai agir sem enganações. Isto é, a solução vai demorar, mas será definitiva. “Não adianta a gente colocar um cimentozinho e dizer que o problema está resolvido – sofismou Lula -porque pode vir mais chuva, outra enchente e vocês vão perceber que a coisa não estava arrumada.” Uma ação desse tipo, aduziu ainda o presidente, seria o mesmo que alguém que quer vender um carro todo furado e passa uma “massinha” para enganar o comprador que, três meses depois, “percebe que comprou uma lata velha e não um carro”.

Fábulas e metáforas (nas quais Lula já demonstrou ser especialista) à parte, o episódio ensina outras lições. Por exemplo: há uma diferença muito grande entre o tipo de atendimento dado pelo presidente da República e aquele oferecido pela prefeita de São Paulo, Marta Suplicy. Embora do mesmo partido, as vítimas de lá não se parecem com as de cá. Dia desses, irada com as observações de uma flagelada, Marta justificou o atendimento diferenciado a áreas onde moram ricos e remediados com fato de que eles pagam mais tributos. O “descaso” referido por Lula no Nordeste, então, estaria plenamente justificado no caso de São Paulo e alhures, onde o PT governa já faz tempo e não consegue controlar a fúria das águas dessas chuvas de verão.

Na mesma visita a Teresina, o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, reforçou a preocupação de Lula: não alimentar a esperança imediata dos desafortunados. Pediu paciência. O governo, segundo ele, está com mais de 400 equipes em constantes visitas a comunidades atingidas pelas chuvas em todo o Brasil, num trabalho “criterioso” para “não acontecer o que aconteceu no passado, quando o presidente mandava o dinheiro e o dinheiro não chegava para quem havia perdido a casa”. Não se sabe quem foi esse atravessador, mas Ciro Gomes, que sabe, prestaria um grande serviço à nação se desse logo nome aos bois. Demonstraria assim duas coisas: que a rigor não houve o descaso referido por Lula, já que os recursos foram destinados à pobreza desafortunada; e que houve corrupção, irresponsabilidade, desvio ou apropriação do dinheiro público por gente que continua por aí, livre e sem castigo. Se assim não fizer, Ciro será pilhado outra vez pronunciando demagogias.

Aliás, é contra esse tipo de discurso genérico que precisamos de urgente vacina. Há um ano, a mesma dupla Ciro-Lula enfrentou problemas semelhantes no Rio de Janeiro. E ali, tanto as críticas quanto as promessas de adoção de ações preventivas, para que esse descalabro dos alagamentos não volte a acontecer, foram feitas no mesmo estilo e idêntico tom. O mapeamento referido por Ciro em Pernambuco foi citado também no Rio, sem que até hoje se conheça qualquer resultado.

Vendo a desgraça alheia causada pelo “descaso” dos poderes públicos, o presidente Lula definiu, finalmente, outra das prioridades de seu governo: a construção de casas, com preferência na fila para famílias desabrigadas pelas cheias. No universo de um déficit habitacional que contabiliza aproximadamente seis milhões de moradias, quem define os primeiros a serem atendidos é São Pedro, portanto. Assessorado pela incompetência de prefeitos e governadores, dos dois juntos ou, simplesmente, pelo risco assumido de gente que mora onde já sabe que um dia a água vai bater. Como se vê, algo além do descaso e mais próximo do acaso.

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