O ato de pesquisar ou o que pesquisar

Pensar a pesquisa, quem pesquisa, por que pesquisa, quando e como pesquisar, o que pesquisar, é o desafio que se coloca, principalmente, àquele que busca o conhecimento. Dessa maneira, ao pensar a pesquisa, algo instigante sempre ocorre e, uma analogia com o diálogo entre Mika e seu interlocutor chega a ser não só instigante como fascinante. À medida que se lê o texto, o ato de pesquisar, vai se delineando, vai se configurando como um espaço de questionamento, de perplexidade, de perguntas inteligentes que o pesquisador precisa fazer para estabelecer um problema de pesquisa. É um ponto de partida…

O texto contribui para uma reflexão sobre o que é uma pergunta inteligente e o porquê da pergunta na pesquisa.

(…) Pode comer uma maçã, falei oferecendo-lhe a fruta.

Foi como se ele estivesse vendo uma maçã pela primeira vez. Primeiro só cheirou, depois arriscou uma dentadinha.

Daí exclamou: Nham-nham! E deu uma grande mordida.

Perguntei: Você gosta?

Ele se inclinou bem para a frente fazendo uma reverência.

Eu queria saber que gosto tem a primeira maçã que alguém come na vida. Perguntei de novo:

Que gosto tem?

Ele fez outra reverência.

Perguntei: Por que você está se inclinando?

Mika se inclinou mais uma vez. Fiquei tão perplexo que só perguntei de novo.

Mas por que você está se inclinando desse jeito?

(…)

Lá de onde venho, explicou ele, nós sempre fazemos uma reverência quando alguém faz uma pergunta fascinante. E quanto mais profunda for a pergunta mais a gente se inclina.

Nesse caso, perguntei o que vocês fazem quando querem se cumprimentar?

Tentamos pensar uma pergunta inteligente.

Por quê?

Primeiro ele fez uma reverência rápida, já que eu tinha feito mais uma pergunta; daí falou:

Tentamos fazer uma pergunta inteligente, para fazer a outra pessoa se inclinar.

Explica Mika que quando você se inclina, você dá passagem. Mas, que uma resposta não merece reverência. Nunca se deve inclinar para uma resposta, ou seja, dar passagem a uma resposta. Esta é um trecho do caminho que está atrás de você. Só uma pergunta pode apontar o caminho para frente.

A lição de Mika mostra a importância de um problema de pesquisa e de que este seja sempre uma questão que intriga o pesquisador, que o desafia. Na prática, o problema é exatamente aquilo que se quer mostrar, é aonde se quer chegar, ou seja, qual tarefa científica vai ser realizada, como o objeto de pesquisa será tratado. O problema de pesquisa aponta para o que fazer, o que ler, que caminhos seguir, que dados precisam ser produzidos, analisados, interpretados. Todo esse desafio o pesquisador recebe gratuitamente de seu problema de pesquisa, de sua pergunta inteligente, uma vez que só ela poderá apontar o caminho para frente, o ponto de partida para o ato de pesquisar.

O ato de pesquisar, tradicionalmente, esteve cercado de ritos, dentre eles uma coleta de dados que contribuiria para a construção de um texto formal e uma postura quantificadora. Hoje, ao atentar para os princípios científico, formativo e educativo da pesquisa, pode-se dizer que existem diferentes espaços de pesquisa e que o ato de pesquisar está voltado também a todos os níveis de escolaridade.

O avanço das idéias sobre o ato de pesquisar, gerado pelos embates da própria academia sobre quem pode e deve desenvolver o ato de pesquisar vem fazendo com que autores, dentre eles Pedro Demo (1995, p.51) expliquem a pesquisa como sendo uma atitude cotidiana do aprender a aprender, saber pensar para melhor agir, garante a diferença substancial entre treinar e educar, copiar e construir, imitar e participar, e que este ato de pesquisar passa a ser o processo de superação da reprodução, da cópia do professor e do aluno, possibilitando a estes serem partícipes de sua própria formação permanente.

O ato de pesquisar, seja na academia, no espaço da escola básica, no espaço de formação inicial ou continuada, está intimamente atrelado ao questionamento que se faz da realidade e discussão dos problemas sociais. Lüdke e André (1986, p.1) explicitam que para se realizar o ato de pesquisar é preciso promover o confronto entre os dados, as evidências, as informações coletadas sobre determinado assunto e o conhecimento teórico acumulado a respeito dele. Esse confronto não cai do céu e nem nasce do nada, ele emerge de um problema que intriga o pesquisador e/ou grupo de pesquisadores. O problema é fruto de inquietações, curiosidades, questionamentos em relação à realidade como ela se apresenta. Mesmo fazendo parte do interesse de quem está envolvido com o tema da pesquisa, é preciso delimitá-lo, pois apenas um recorte daquele saber será objeto de investigação.

O ato de pesquisar tem o objetivo de querer saber, de desejar conhecer o funcionamento das coisas para a partir desse conhecimento fazer uso dos conhecimentos produzidos.

No ato de pesquisar está a possibilidade do desenvolvimento do processo de construção do conhecimento emancipatório de que fala Boaventura de Souza Santos (1991). A este processo integra-se o desenvolvimento do habitus científico, necessário ao ato de pesquisar, que, para Bourdieu (2001, p.17-58), se dá pela instauração de atitudes que considerem a pesquisa como atividade racional e científica sujeita a riscos, hesitações e renúncias. Atitudes de problematização, questionamento e transformação de objetos insignificantes em científicos capazes de promover a interação teoria/prática e de provocar rupturas com o senso comum.

É importante ressaltar que o ato de pesquisar é uma atividade básica da ciência. É por meio dessa atividade científica que se descobre a realidade. Para descobri-la é preciso questionar, estabelecer ?perguntas inteligentes?. No entanto, as respostas encontradas não representam resultados definitivos. Como diria Mika, ?uma resposta nunca merece uma reverência. Mesmo que seja inteligente e correta, nem mesmo assim você deve se curvar a ela?. Quando você se inclina, continuou Mika, ?você dá passagem, e a gente nunca deve dar passagem para uma resposta. Ela é parte do caminho que está atrás de você, só uma pergunta pode apontar o caminho para frente?. Portanto, é no diálogo do pesquisador com a realidade, pelo ato de pesquisar, que ele busca compreender e enfrentar de modo crítico e criativo as situações desafiadoras da cotidianidade e dos problemas sociais.

Nota

Parte do texto de GAARDER, Jostein. Ei! Tem alguém aí? Tradução de Isa Mara Sando. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1997. p.26-28.

Referências

BOURDIEU, P. O poder simbólico. 4.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

DEMO, P. Pesquisa e construção do conhecimento: metodologia científica no caminho de Habermas. 2.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. (Biblioteca Tempo Universitário; 96).

LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. (Temas básicos de educação e ensino).

SANTOS, B. de S. A transição paradigmática: da regulação à emancipação. Oficina do Centro de Estudos Sociais, Coimbra, Universidade de Coimbra, n.25, 1991.

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