Apenas 25% entendem o que lêem

Se você já passou pelo título, consegue ler as primeiras frases desta matéria e entender exatamente o que elas significam, saiba que, para muita gente, esse ato aparentemente simples a pessoas alfabetizadas não é tão fácil assim. O fato de não conseguir entender o que textos curtos e de informações nada complexas querem dizer é o que se chama de analfabetismo funcional. O que não significa que as pessoas que se enquadram neste título não saibam ler ou não tenham escolaridade. Ao contrário. Elas juntam sílabas em palavras e palavras em frases, mas quase sempre são impossibilitadas de trazer o sentido de uma bula de remédio ou um bilhete.

O termo alfabetismo funcional surgiu por uma definição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e diz respeito àqueles que têm capacidade de "utilizar a leitura e a escrita para fazer frente às demandas de seu contexto social e usar essas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida", como define o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional de 2003 (Inaf), pesquisa realizada pelo Instituto Paulo Montenegro, ligado ao Ibope, e pela ONG Ação Educativa. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) determina o analfabeto funcional a partir do tempo de estudo: quem tem quatro anos de escolaridade se encaixa no termo. Porém, de acordo com especialistas, essa delimitação nem sempre reflete a realidade.

"É um problema que vem crescendo não apenas em países da América, mas também na Europa Ocidental. São pessoas que, seja por ter parado os estudos ou por não praticar, perdem a habilidade de ler, interpretar e escrever bem", caracteriza a professora Marta Moraes da Costa, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Segundo Marta, o governo batalhou durante muito tempo contra as altas taxas de analfabetismo no Brasil por meio de programas como o Alfabetização Solidária. "Mas a formação não pode ser rompida, senão há uma regressão. Os programas não preparam, por exemplo, para ler e assinar um contrato ou procurar emprego em um classificado", exemplifica.

O relatório de 2003 do Inaf indica, ainda, que cerca de 30% dos brasileiros só conseguem extrair informações simples em enunciados curtos, de uma frase, e que apenas 25% da população do País entre 15 e 64 anos consegue entender plenamente um texto amplo e extrair dele mais de uma informação, correlacionando-as quando possível. "Ou seja, somente estes lêem e entendem o que lêem. É uma estatística alarmante", interpreta.

Uma das razões para este fato é a concorrência entre as diferentes mídias. A visualidade promovida pela publicidade, TV e cinema, por exemplo, contribui para o recebimento de informações mais facilmente, bloqueando a capacidade de raciocínio para a leitura. "Perde-se a capacidade de interpretar o abstrato, o simbólico. Afinal, ler não é só prazer; é atuar, agir, pensar, e a escola não tem pregado isso", acredita Marta. Problemas de escolarização, aliás, entram neste contexto com grande carga de responsabilidade. Conforme a professora, "a formação escolar é deficitária e se tornou facilitada", citando o Ciclo Básico de Alfabetização, programa da educação pública que tem como principal objetivo impedir a quebra do processo de alfabetização, evitando a repetência e conseqüente evasão nas escolas. "Reprovar é traumático se for injusto. Mas hoje os professores têm de lidar não apenas com o ensino em sala de aula, mas com problemas familiares, de alimentação, comportamento sexual e a violência, por exemplo. São tantos problemas sociais que a educação fica em último plano", acredita a professora.

Dificuldade na universidade

A deficiência do brasileiro em entender o sentido de diferentes textos fica evidente quando o tema e o vocabulário são mais complexos, exigindo maior capacidade de interpretação. "Entre os textos mais fáceis, está o jornalístico, que é linear e tem vocabulário simples. Os textos mais difíceis são principalmente os científicos e literários, que exigem análise, interpretação", diferencia a professora do curso de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Cátia Toledo.

Essa diferenciação fica evidente principalmente entre vestibulandos e até universitários. "Eles são treinados durante toda a vida escolar a decifrar textos simples, e quando se deparam com algo complexo, têm muita dificuldade", explica a professora. No vestibular, as provas de redação demonstram a inabilidade de muitos em interpretar o que o enunciado pede. "Os alunos não entendem a proposta e acabam escrevendo sobre coisas totalmente diferentes da intenção do exercício", exemplifica. E no início da vida universitária, o contato com livros e textos acadêmicos gera dificuldades. "Percebemos que isso tem a ver com a falta de leitura durante toda a formação educacional", justifica Cátia.

Segundo a professora, as políticas educacionais, se incorretamente aplicadas, agravam o quadro. "Muitos livros adotados nas escolas se preocupam mais em cumprir os parâmetros curriculares do que com o leitor. Não se pode pensar apenas em estatísticas, mas, antes, em formar cidadãos capazes de interpretar as mais diferentes leituras", enfatiza. Para ela, a falta de estímulo à leitura e à cultura geral são os principais responsáveis pelo desempenho insatisfatório de alunos brasileiros de diferentes classes, tanto do ensino público quanto privado, no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa/2003): o Brasil ficou em último, entre 32 países, no ranking de capacidade de compreensão de textos. (LM)

Programa do PR é destaque

O Ministério da Educação (MEC) determina como analfabetos funcionais aqueles que têm menos de quatro anos de escolarização. E, apesar de a delimitação ser alvo de questionamentos, a posição do MEC é trabalhar para enfrentar primeiramente o número de analfabetos funcionais no País (25,1% da população, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD/IBGE) para, a partir daí, dar continuidade ao desenvolvimento da educação como um todo, superando estatísticas.

Tal posição é indicada pela coordenadora pedagógica do Departamento de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC, Maria Margarida Machado. Ela aponta como primeira determinação do governo a mobilização e encaixe dessa população em algum programa de alfabetização básica. "É o caso do Programa Brasil Alfabetizado e da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em ambos contamos com a atuação dos municípios e comunidades, porque o público atendido por esses programas é, em geral, segmentado, e necessita de atendimento especial", cita, dando como exemplo as comunidades de pescadores, que só podem ir à escola quando não é época de ir para o mar. "Exigem horários diferenciados e currículos dinamizados, o que pede formação especial dos professores e organização do sistema para receber os alunos", afirma.

A coordenadora destaca o Paraná como estado atuante na coordenação do EJA. "O Estado conta com a mobilização dos municípios", justifica. Mas, dentre a região Sul, o Paraná é o estado que ainda conserva os índices mais altos de analfabetos funcionais – 22,6% da população em 2003 (PNAD/IBGE), contra 17,5% em Santa Catarina e 17,1% no Rio Grande do Sul, apesar da diminuição em 12 pontos percentuais neste índice em dez anos: o Estado saltou da 12.ª posição (34,6%) entre as maiores taxas de analfabetismo funcional no Brasil em 1993 para a oitava (22,6%) em 2003. No Brasil, a média de todos os estados em 1993 foi de 35,9% da população e, em 2003, 25,1%, uma redução de 10,8 pontos percentuais. (LM)

Quantidade não quer dizer qualidade

A diretora do Departamento de Ensino Fundamental da Secretaria Municipal de Educação de Curitiba, professora Nara Salamunes, salienta uma vertente não muito estimada do analfabetismo funcional: segundo ela, é preciso pensar no termo não como rótulo de quem não consegue entender textos, mas como uma conseqüência da falta de acesso aos livros no Brasil.

"A pesquisa do Inaf revela que 67% dos entrevistados dizem gostar de ler. Mas uma coisa é gostar e outra é a disponibilidade para acessar os livros", informa, referindo-se ao Índice Nacional de Alfabetismo Funcional, levantamento realizado pelo Instituto Paulo Montenegro, ligado ao Ibope, e a ONG Ação Educativa. A professora diz não relacionar apenas a quantidade, mas a qualidade da leitura que o brasileiro faz. "98% deles disseram ter acesso a algum tipo de leitura em casa, seja uma receita de bolo, um livro didático ou a Bíblia. Mas é preciso diversificar o acervo e melhorá-lo", acredita, contando que a Prefeitura de Curitiba tem trabalhado no sentido de ampliar e melhorar a qualidade dos acervos das bibliotecas municipais. "O espaço destinado a elas tem o intuito de fazer da leitura uma possibilidade de lazer também", complementa.

As escolas que serão inauguradas pela rede pública na cidade já virão com espaço especialmente destinado a biblioteca, determinação que não existia até então. "Além da necessidade de ampliar o acesso à internet, o que nunca deve excluir o papel dos livros, revistas, jornais. A internet, aliás, disponibiliza muitos deles", acrescenta Nara, que destaca a escola como propiciadora também da produção escrita, um avanço dentro do alfabetismo. "Se conseguirmos aumentar a quantidade de leitura, aumentaremos também a de produção de textos. Daí passaremos do processo de alfabetização para o de letramento; este se constrói ao longo da vida, por meio das muitas leituras, mobilizando o cidadão para interagir em diferentes frentes sociais", conclui. (LM) 

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