Metáforas em trânsito

As horas desperdiçadas no trânsito urbano bem que poderiam ser contabilizadas no sistema bancário do céu. Deveriam pagar-se no céu o que suportamos nos pequenos delitos cometidos em horas de engarrafamento e nos maus pensamentos originados em nós pela imperícia dos motoristas, que nos custa freadas, manobras rápidas, e muita paciência.

No exercício mental de vencer a morosidade do tráfego com a rapidez e riqueza do imaginário, podemos ser brindados com cenas da maior estranheza, a comprovar que a realidade ultrapassa muitas vezes a mais ilógica fantasia.

Num desses dias em que a manhã e a agenda prometiam horas de rotina, fui presenteada com uma motocicleta intrusa, a bordar com inexistentes fios e existente desenvoltura um tecido de manobras em ziguezague até estacionar à frente de meu carro. Pude ler, então, em seu bagageiro, letras mal arrumadas, sem pretensões à estética, o nome da, suponho, empresa a que servia: Companhia da Mirra. No baú bagageiro, mal acomodados e ultrapassando os limites do recipiente, um saco de batatas, um pacote de farinha de trigo e dois grandes rabos de bacalhau. O contraste esdrúxulo entre as palavras e os objetos produziu de imediato o raio laser do processo metafórico. A mirra e o bacalhau. E as metáforas trouxeram o diálogo entre diferentes campos semânticos, entre relações inesperadas, entre posturas opostas, criando um rótulo nada comum.

O trânsito não interrompeu seu comportamento alucinado. O motoqueiro seguiu seu caminho fora de traçado, a manhã continuou clara como costuma ser. Com os olhos, mãos e pés na rotina dos movimentos de dirigir, deixei que aquela imagem paradoxal seguisse uma rota própria em minha mente.

Chegando a meu destino, a primeira ação levou-me ao fiel dicionário. Nele está registrada a descrição da palavra mirra: ?planta da família das burseráceas, cuja casca exsuda resina aromática usada desde a Antiguidade como incenso e medicinal, e que já foi considerado um bem raro e valioso?, nos ensina mestre Houaiss. Para que o bacalhau não se sentisse preconceituosamente marginalizado, recorri ao mesmo livro para descobrir o que já sabia: ?peixe teleósteo (…) dos mares frios do hemisfério norte, de grande importância comercial, vendido seco e salgado?. Ambos de valor fora do comum, pertencentes a reinos complementares ao humano, ambos odoríficos e estrangeiros. Cada um cumprindo seu papel, cada um concentrando em si valores atribuídos pelos homens que apontam para direções opostas. Seja por influência da passagem bíblica da visita dos Reis Magos, seja pela sonoridade mais fechada e anasalada, seja por seu volume esbelto, a mirra, ao estabelecer com o peixe alimento uma relação opositiva, atrai para si valores positivos.

Alguns dias depois, caiu-me sob os olhos um texto de Angela Pradelli, escritora e professora argentina, tratando de leitura e publicado no jornal El Clarín, de Buenos Aires, com o título Sin buenas lecturas, ho hay escuela posible. Nessa curta crônica, a escritora defende o ponto de vista de que é indispensável ler os bons autores e textos (Shakespeare, Cervantes, Echeverría, por exemplo). Ao mesmo tempo em que qualifica a pedagogia do interesse como uma pedagogia mentirosa, pois, sob o argumento de que os alunos devem ler o que lhes interessa, as obras literárias estão sendo substituídas por textos de auto-ajuda e relatos com moralismo simplório e previsível. Cita Francis Bacon: ?A leitura produz pessoas completas; a conversação pessoas dispostas, e a escrita, pessoas precisas?. A leitura de textos densos e significativos, digo eu há algum tempo, exerce sobre o cérebro e consciência um papel que nenhuma outra forma/veículo, mesmo que use palavras, consegue exercer. Não ler atrofia o cérebro.

Uma das questões freqüentes em cursos de atualização de professores diz respeito aos critérios de seleção de textos literários para a formação mais adequada de leitores ou para as atividades em sala de aula. A ansiedade pode estar relacionada ora ao desejo de rapidez na decisão sobre o livro a adotar, ora ao elenco de características aplicáveis forçosamente à intensa produção editorial disponível, ora como substituição de leituras e escolhas mais apuradas. Um professor que seja leitor crítico e proficiente sabe escolher, orientar, adequar textos a leitores diferenciados. Não ler é submeter-se às escolhas de outrem.

Entre professores e demais agentes de leitura persiste uma polêmica. Uns consideram que as pessoas devem ler apenas os bons autores, ou seja, aqueles que a história e os leitores especializados rotularam como de alta qualidade, os que compõem o cânone literário. Outros acreditam que as pessoas devem se manter lendo continuadamente, não importa a qualidade estética e/ou humana dos textos. No segundo caso, se o leitor não consegue ler Graciliano Ramos, qualquer livro de auto-ajuda pode substituí-lo, desde que não se interrompa o decantado hábito de leitura. (Hábito é palavra contaminada pelo automatismo, exatamente a atitude combatida pelas obras que produzem sentido permanente no leitor.) Se o leitor adolescente não consegue ler Dickens, qualquer Harry Potter serve.

Na pedagogia do interesse e da facilitação, esquecemos de promover a ascensão do leitor, do plano rés-do-chão do texto previsível para os andares superiores do texto emancipador, assim denominado porque fere e transforma. Se o professor não mediar essa passagem, ou se contribuir para retardá-la, nutrirá o estômago do aluno com o bacalhau, mas o impedirá de sentir o olorífico perfume da mirra.

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