Interrogatório por videoconferência: vale ou não vale?

Em 1976, quando eu ainda era juiz de Direito em São Paulo, realizei os primeiros interrogatórios on-line no nosso país (provavelmente os pioneiros também da América Latina). Naquela época dávamos a denominação modem-by-modem, porque não tínhamos recursos tecnológicos suficientes para se fazer a videoconferência (que hoje permite a interação de áudio e vídeo: um interlocutor veja e escuta o outro, pode dialogar com o outro). O tema gerou muita polêmica, que até hoje perdura.

No princípio deste ano (2005) o legislador paulista deliberou cuidar da matéria. Por força da Lei 11.819, de 05.01.05, autorizou o interrogatório assim como a audiência de presos por videoconferência. Thales Tácito Cerqueira (cf. www.proomnis.com.br) concluiu com acerto que se trata de tema processual, sendo inconstitucional a lei paulista. Sobre processo a única que pode legislar é a União. Os Estados federados não.

Sendo inconstitucional a citada lei, que deve ser desconsiderada, voltamos ao status quo. Daí a indagação: mas vale ou não vale o interrogatório por videoconferência? O Código de Processo Penal nada diz especificamente sobre isso: nem permite nem proíbe tal interrogatório. Desse modo, de fundamental relevância é considerar a posição dos nossos tribunais.

Na sua primeira decisão o STJ (RHC 6.272-SP, rel. Min. Felix Fischer, j. 03.04.97) não anulou o interrogatório "em tempo real". Inexistindo a demonstração de prejuízo, o ato reprochado não pode ser anulado. Mas de qualquer maneira sublinhou a excepcionalidade do método. Em outra decisão, mais recente, salientou-se a mesma doutrina: STJ, RHC 15.558-SP, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 14.09.04. Fundamento legal: CPP, art. 563: "nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa".

Eventual nulidade, portanto, não reside no método, sim, na forma de realização do ato (cf. Péricles Piza, HC 428.580-3, TJSP), que será válido desde que, dentre outras exigências, se garanta visão, audição e comunicação reservada entre o réu e seu defensor. Melhor ainda quando se faz a gravação em CD. Mas jamais se pode deixar de observar a ampla defesa e o contraditório, assim como a publicidade do ato. O réu tem que ter a possibilidade de dialogar com o juiz e seu advogado. Deve ser visto e ouvido e, além disso, tem direito de falar reservadamente com seu defensor, destacando-se uma linha telefônica para isso (Apelação 1.384.389-8, TacrimSP, rel. Ferraz Arruda, j. 21.10.03).

Muito relevante é a preservação da "percepção cognitiva do ato", que deve ser exatamente a mesma auferida na forma presencial clássica. Se possível assegurar a presença de dois advogados (um no presídio e outro no fórum), tanto melhor (embora não seja imprescindível). A sala (não cela) onde se encontra o réu deve ser uma extensão da própria sala de audiências. A liberdade de expressão de pensamento do réu deve ser assegurada de modo intangível. Jamais o ato pode ser realizado sem a presença de um funcionário judicial nesse local remoto.

O interrogatório virtual ou mesmo qualquer outro ato processual deve, necessariamente, observar todos os princípios constitucionais (ampla defesa, contraditório, publicidade etc.). Qualquer defecção será motivo para a declaração da nulidade do ato. Não se deve nunca imaginar (autoritariamente) que a videoconferência possa ser utilizada só para agilizar o processo e "condenar o réu mais rapidamente".

A videoconferência, hoje, causa a mesma reação provocada pela máquina de escrever ou a estenotipia. Toda mudança de paradigma implica traumas. Isso é normal. Mas, de qualquer modo, não se trata de abominar o formalismo, sim, compatibilizá-lo com o progresso. O judiciário não pode ser um excluído digital ou informacional. A modernidade tem que se harmonizar com a plenitude de defesa. A medicina já usa todo aparato informatizado para salvar vidas. Do mesmo modo, dele devemos nos valer para assegurar a liberdade, assim como sua conciliação com outros direitos fundamentais. Ou nunca ingressaremos no século XXI.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente da Rede de Ensino IELF PRO OMNIS (1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina – www.proomnis.com.br)

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