Funcionários públicos são condenados por improbidade administrativa

Três funcionários públicos municipais (R.N., C.D. e S.S.L.), que se valeram da autoridade de seus cargos para autorizar a realização da atividade ilícita de “cuidador” ou “guardador” de veículos (“flanelinhas”) em área pública situada no entorno do Estádio Willie Davids, em Maringá (PR), mediante o pagamento de um percentual sobre os ganhos obtidos, foram condenados pela prática de ato de improbidade administrativa.

 

Eles infringiram a norma do art. 11, inciso I, da Lei n.º 8.429/92 (“Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência; […]”).

 

Quanto às sanções, ao primeiro (R.N.), “porque superior hierárquico dos demais (cabendo-lhe, assim, as atividades de ordenação, controle e sanção em meio à estrutura do órgão) e identificado em diversos depoimentos como a pessoa a quem competia a coordenação do ajuste, cabe uma dosagem maior de pena. Por seus atos, há de responder com: i) a perda da função pública – se dela ainda for mandatário; ii) multa civil equivalente ao décuplo da remuneração que percebia ao tempo dos fatos; e iii) a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos”.

 

Ao segundo (C.D.), que “contribuiu materialmente para a realização do ato – tendo inclusive percebido diretamente o repasse de valores -, são cabidas as penas de: i) multa civil em valor correspondente ao sêxtuplo de sua remuneração à época e ii) proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos”.

 

Ao terceiro (S.S.L.), “por haver contribuído de maneira muito similar ao segundo, são igualmente cabíveis as penas de: i) multa civil em valor correspondente ao sêxtuplo de sua remuneração à época; e ii) proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos”.

 

Essa decisão da 4.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná reformou, por unanimidade de votos, a sentença do Juízo da 2.ª Vara Cível da Comarca de Maringá que julgou improcedente a pretensão punitiva formulada pelo Ministério Público na ação civil pública por ato de improbidade administrativa nº 721/2007 em face de R.N., C.D. e S.S.L.

 

O recurso de apelação

 

Inconformado com a decisão de 1.º grau, o Ministério Público (MP) interpôs recurso de apelação alegando que a sentença errou ao julgar improcedente a pretensão deduzida, uma vez que estaria devidamente comprovado nos autos que os Apelados, valendo-se da autoridade de seus cargos públicos, teriam autorizado a realização da atividade ilícita de “cuidador” ou “guardador” de veículos (“flanelinhas”) em área pública situada no entorno do Estádio Willie Davids, mediante o pagamento de um porcentual dos ganhos obtidos.

 

Afirmou também o MP que tal conduta houvera malferido a lei – quer pelo fomento a uma atividade ilícita, quer pela clandestinidade e informalidade do negócio – e os princípios atinentes à Administração Pública, desvalor que não teria se alterado pelo fato da iniciativa ter partido dos próprios “guardadores” (que teriam “espontaneamente” vertido parte dos seus ganhos a bens e serviços de interesse da Secretaria Municipal de Esportes) ou mesmo por não se tratar de um bem a que a prefeitura explorasse economicamente.

 

O voto da relatora

 

A relatora do recurso de apelação, desembargadora Maria Aparecida Blanco de Lima, consignou inicialmente: “Cuidam os autos, ao atual tempo do processo, de Apelação Cível manejada pelo Ministério Público do Estado do Paraná com a pretensão de ter reformada sentença que, rejeitando a tese de incursão do Apelado em ato de improbidade, julgou improcedente a pretensão condenatória deduzida na petição inicial”.

 

“Na demanda que originou o presente recurso, o órgão ministerial pretende a responsabilização de três agentes públicos que, ao seu entender, valeram da autoridade de seus respectivos cargos para permitir que determinadas pessoas – ao arrepio da legislação municipal – pudessem prestar o serviço informal de guarda de automóveis estacionados em imóveis públicos sitos nas cercanias do Estádio Municipal Willie Davids, desde que vertessem parte de seus ganhos à paga de bens e serviços de interesse da Secretaria de Esportes.”

 

“Todavia, processada a causa, o douto magistrado de primeiro grau decidiu pela rejeição do pedido. Para tanto, observou que a própria inicial reconhece que os réus não agiram no intuito de se locupletarem ilicitamente com os valores auferidos, mas sim de arrecadar recursos para o custeio e o fomento de atividades esportivas amadoras e escolares no Município. Ao mais, afirma que a atividade dos “guardadores de veículos” é comum e habitual naquela localidade, tendo os réus (Apelados) apenas combinado informalmente com aquelas pessoas que repassassem, espontaneamente, parte dos valores arrecadados com a atividade ao órgão municipal de esportes. Acrescenta, ainda, que não haveria de se falar em desvio de recursos públicos, haja vista o Município não explorar economicamente o espaço, o qual – aberto à via pública e desprovido de estrutura – não teria relevância empresarial que justificasse sua delegação, mediante contrato licitado, a um particular. Fundamentos dos quais infere não terem os réus incorrido na prática de qualquer desvio de recursos públicos, enriquecimento ilícito ou violação a princípio que justificasse lhes fosse imputada a prática de ato de improbidade.”

 

“Argumentos referendados pelo membro do Ministério Público atuante em segundo grau, cujo parecer reafirma o entendimento de que a conduta imputada aos agentes não se subsume a qualquer das hipóteses de improbidade descritas na Lei n.º 8.429/92, quanto mais – e, aqui, vai além dos fundamentos da sentença – em face de não se haver demonstrado a presença do elemento subjetivo (dolo ou culpa) essencial à caracterização da conduta ímproba, conforme posicionamento firmado com ainda mais ênfase pelo Superior Tribunal de Justiças em suas recentes decisões.”

 

“Não obstante a respeitabilidade dos motivos invocados quer pelo juízo originário quer pela Procuradoria de Justiça, é de se revisitar a conclusão auferida em sentença frente aos elementos de convicção carreados aos autos, haja vista a ampla pretensão recursal deduzida pelo órgão ministerial atuante no feito.”

 

“Conforme se apura dos próprios fundamentos de fato e de direito que embasam tanto o pedido inicial quanto o de reforma, entende o Ministério Público que a conduta dos réus (Apelados) há de ser reputada ímproba pela incursão em três das hipóteses descritas na Lei n.º 8.429/92: i) o inciso VII do artigo 9º, que traz caso de enriquecimento ilícito exteriorizado pela aquisição de bem cujo valor seja desproporcional à renda do agente público; ii) o inciso X do artigo 10, consistente em lesão ao erário pela atuação negligente do servidor seja na arrecadação da renda ou tributo, seja na conservação do patrimônio público; e iii) o inciso I do artigo 11, a veicular lesão aos princípios da Administração Pública por meio da prática de fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência.”

 

“Primeira das hipóteses aventadas pelo “parquet”, o enriquecimento ilícito pela aquisição de bem cujo valor se mostre desproporcional à renda do agente público (art. 9º, VII) presta-se, segundo MARCELO FIGUEIREDO: a colher o agente na situação de ter incorporado ou negociado de qualquer forma, de ter internado em seu patrimônio ou de terceiro bens de qualquer natureza – portanto, móveis, imóveis ou semoventes. Em sua ação deve haver evolução patrimonial não justificada. Preocupa- se com a desproporção, o desequilíbrio, entre suas rendas, proventos em geral e a capacidade de adquirir bens.”

 

“Em outras palavras, está-se diante do caso daquele agente que – como bem observa FÁBIO MEDINA OSÓRIO – ‘milagrosamente, ostenta um padrão de vida absurdo e totalmente incompatível com suas funções, suas rendas e, mais importante, sua evolução declarada de patrimônio (art. 9º, VII), sem qualquer causa aparente’.”

 

“Hipótese que não se percebe nos presentes autos.”

 

“Ao arrepio do que apregoa a mais atilada doutrina havida sobre o tema, no caso em apreço o Ministério Público não só se furtou a descrever quais bens adquiridos pelos recorridos (ou pessoas consigo relacionadas) revelariam uma evolução patrimonial desproporcional a seus respectivos ganhos regulares, mas tampouco se dignou a trazer qualquer argumento ou prova que viesse a contribuir para a formação do convencimento judicial de que os Apelados efetivamente experimentaram alguma outra forma de enriquecimento desarrazoado, vale dizer, desprovido de uma causa lícita aparente.”

 

“Assim, em tendo o “parquet” faltado para com seu ônus processual de demonstrar a adequação típica do ato de improbidade administrativa conclamado, por rigor cumpre seja rejeitado o pedido de imputação, aos agentes apelados, do ilícito administrativo descrito no artigo 9º, inciso VII, da Lei n.º 8.429/92; como, aliás, – e bem se assevere – decidiu corretamente o juiz de primeira instância.

 

“Outro suporte fático hipotético ventilado pelo Apelante é aquele trazido pelo artigo 10, inciso X, da Lei de Improbidade Administrativa e consiste na lesão ao erário pela atuação negligente do servidor, seja na arrecadação da renda ou tributo, seja na conservação do patrimônio público.”

 

“A negligência, segundo RUI STOCO, ‘é o descaso, a falta de cuidado ou de atenção, a indolência, geralmente o non facere quod debeatur, quer dizer, a omissão quando do agente se exigia uma ação uma conduta positiva’ e – no entender do órgão ministerial – a conduta negligente se revela no fato dos valores auferidos com a vigilância de veículos não terem sido recolhidos ao tesouro municipal, diretamente na tesouraria do Município ou por meio de GIA (guia de informação e apuração) paga em qualquer das instituições financeiras credenciadas, como devido.”

 

“Todavia – e aqui se olvidou o Ministério Público – é preciso que dessa omissão frente a um dever agir definido em lei (no seu sentido amplo) decorra aquele dano antevisto pela norma no seu “caput”. Significa dizer que o agir negligente do servidor só constitui ato de improbidade quando seja causa de um dano reprovado pelo ordenamento jurídico, que por meio da Lei n.º 8.429/92, só admite a modalidade culposa em atos que importem em prejuízo ao erário.”

 

“Conforme lição professada por WALLACE PAIVA MARTINS JÚNIOR: ‘Para a lei, lesão ao erário é qualquer das condutas explicitadas no art. 10, caput: perda, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação, por ação ou omissão, dolosa ou culposa. A tônica central do art. 10 é fornecida pela compreensão da noção de perda patrimonial, que é o efeito do ato comissivo ou omissivo do agente, e expressa-se na redução ilícita de valores patrimoniais. A ilicitude (aqui compreendida a imoralidade) é traço essencial à lesividade. Esta é corolário daquela por força de presunção legal absoluta, que nada interfere na mensuração do dano. A análise da lei mostra, sem sombra de dúvida, que o art. 10, caput, conceitua o prejuízo patrimonial, enquanto seus incisos indicam situações em que a lesão é elementar e decorre indissociavelmente. Nesse artigo cuida-se de hipóteses de atos lesivos ao patrimônio que, por obra do comportamento doloso ou culposo do agente público, causaram bônus indevido ao particular e impuseram ônus injusto ao erário, independentemente de o agente público obter vantagem indevida’.”

 

“Logo, para que se possa imputar a alguém a prática de qualquer dos atos de improbidade previstos no artigo 10 da Lei n.º 8.429/92 é preciso que a conduta culposa ou dolosa do agente venha causar ao Estado uma efetiva diminuição patrimonial, ou seja, é necessário que se subtraia bens ou valores de titularidade da Fazenda Pública (subtraindo aqueles que já integram o patrimônio público ou desviando aqueles que viriam a integrar).”

 

“Não é, porém, o que se observa nos presentes autos.”

 

“De início, porque embora as cercanias do estádio municipal constituam bem público, sua disponibilização, àquela época, ao uso irrestrito de todos – ou seja, livre de qualquer afetação ou destinação específica – as faziam bem de uso comum do povo, conforme prevê o artigo 99, I, do Código Civil.”

 

“Assim, se a legislação municipal não as qualificava como bem de uso remunerado, é de se concluir pela sua gratuidade, de tal modo que os valores percebidos pelos particulares que ali atuavam não decorreriam da exploração da coisa pública (contrato de depósito sob a forma de “estacionamento”), mas da prestação de seu próprio labor (serviço de guarda ou vigilância) e, portanto, não constituem receita pública.”

 

“Ao mais, resta evidenciado nos autos que os valores auferidos junto aos guardadores de veículos foram, enfim, vertidos ao patrimônio público, prestando-se à aquisição de bens e serviços afetos à atividade-fim da Secretaria Municipal de Esportes, não se podendo propriamente falar em diminuição do patrimônio estatal.”

 

“Por uma razão ou por outra, resta descaracterizada a realização de dano ao erário, atuando com acerto o magistrado de primeiro grau no que rejeitou também esta adequação típica ao ato de improbidade administrativa.”

 

“Mas há, ainda, uma terceira hipótese de agir contrário à probidade descrita na inicial e ratificada em recurso: a violação aos princípios da Administração Pública pela prática de fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência (artigo 11, I, da Lei n.º 8.429/92).”

 

“E aqui, mostra razão o Apelante em sua insurgência, pois não há se referendar a tese esposada na sentença de que possa subsistir algum interesse público num agir ilícito por parte de um agente do Estado.”

 

“Nesse sentido, é de grande valia a lição de FÁBIO MEDINA OSÓRIO, para quem: ‘Não há dúvida de que se pode censurar a persecução de interesse supostamente público, diverso daquele previsto na regra de competência, com as malhas finas da LGIA. Eis, portanto, a clássica distinção entre interesses públicos primários e secundários, os primeiros relacionados com a sociedade o os segundos com a Administração Pública, como se esta pudesse ostentar interesses verdadeiramente públicos incompatíveis com a ordem jurídica, o que não se pode aceitar. Entendemos, porém, que a distinção público/privado é válida, pelo menos para efeitos de aquilatar os interesses que, não sendo privados, tampouco são primariamente públicos, por estarem dissociados de pressupostos de validade. Tais interesses nem sempre serão menos nocivos que os puramente privados, o que não lhes retira um lugar próprio no campo normativo e teórico. A Administração Pública pode ostentar um interesse em arrecadar impostos ou investigar pessoas suspeitas de crimes, o que não se confundiria com um interesse privado de algum fiscal de fazenda ou autoridade fiscalizadora no sentido de obter vantagens econômicas indevidas ou perseguir desafetos. Não obstante reconhecermos o interesse público de incrementar os cofres públicos com maior arrecadação, a Administração Pública não pode cometer o delito de um excesso de exação, tampouco pode arrecadar tributos com atropelo das fórmulas legais ou promover escutas telefônicas clandestinas, em oposição às ordens judiciais, para salvaguardar direitos fundamentais de vítimas de delitos, hipóteses claramente identificadas na LGIA’.”

 

“É dizer, por mais que se possa identificar algum proveito coletivo na atuação dos Apelados – eis terem eles, ao fim e ao cabo, percebido tais valores no intuito de custear despesas de certa valia ao grupo social (fomentando o esporte amador e estudantil) -, não há de se confundi-lo com o interesse público sempre almejado e perseguido pela Administração em todos os seus atos, pois o interesse público primário ou propriamente dito não se revela senão pela estreita observância das regras e princípios que informam o regime jurídico administrativo.”

 

“Interesse primário – leciona CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO – é aquele ‘que a lei aponta como sendo o interesse da coletividade: o da observância da ordem jurídica estabelecida a título de bem curar o interesse de todos’, rematando o aludido autor: ‘Por isso os interesses secundários não são atendíveis senão quando coincidirem com interesses primários, únicos que podem ser perseguidos por que axiomaticamente os encarna e representa. Percebe-se, pois, que a Administração não pode proceder com a mesma desenvoltura e liberdade com que agem os particulares, ocupados na defesa das próprias conveniências, sob pena de trair sua missão própria e sua própria razão de existir’.”

 

“Dessa forma, se a lei impõe formalidades mínimas aos negócios havidos entre a Administração e os particulares e repudia com sanção invalidante aqueles firmados de maneira precária (artigo 60, parágrafo único, da Lei n.º 8.666/93) é porque no real interesse da coletividade, os atos estatais devem sempre poder ser objeto de alguma forma de controle (mesmo que sigilosa por expressa autorização constitucional), não se admitindo ao Estado encerrar tratativas obscuras ou clandestinas, às costas de todos, das quais não se conheçam os sujeitos, os motivos ou mesmo os efeitos perseguidos.”

 

“A Administração Pública, portanto, não pode “combinar informalmente” a percepção de um montante junto a qualquer parcela do grupo social, seja qual for o motivo por detrás de sua conduta; não pode tratar clandestinamente objeto algum e tampouco negociar interesse senão pelas vias formais de atuação. Se o faz, por suposto, está a se desviar do norte que se lhe impõem a lei e os princípios administrativos e conseguintemente, não realiza interesse público propriamente dito.”

 

“Em igual sentido, tendo a Lei Municipal nº 4.556/97 expressamente proibido “a prestação dos serviços de cuidador ou guardador de veículos ou ‘flanelinha'” (artigo 1º) e determinado a seus agentes que autuassem aqueles que venham a incorrer em tal conduta, encaminhando-os aos órgãos de assistência social do município (artigo 2º), outra não pode ser a conclusão auferida que não o mais completo desvio de finalidade no agir dos Apelados, que não se contiveram em apenas atuar lenientemente – tolerando o que a lei reputa intolerável – e assumiram verdadeiro papel de instigadores de uma atividade tida, para todos os efeitos, como ilícita, trazendo-a para o seio da Administração Pública, seja ostensivamente ajustando a partilha dos resultados dela percebidos, seja aceitando de bom grado parte dos valores com ela amealhados.”

 

“Afinal, atuar à margem do interesse público é agir em desvio de finalidade, como, aliás, já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça em julgado bastante ilustrativo: ‘ADMINISTRATIVO. REMUNERAÇÃO DEVEREADORES. DESVIO DE PODER. ARTIGO 37, C.F.LEIS COMPLEMENTARES NUMS. 25/75, 38/79, 45/83 E 50/85. 1. O DESVIO DE PODER PODE SER AFERIDO PELA ILEGALIDADE EXPLICITA (FRONTAL OFENSA AO TEXTO DE LEI) OU POR CENSURAVEL COMPORTAMENTO DO AGENTE, VALENDO-SE DE COMPETENCIA PROPRIA PARA ATINGIR FINALIDADE ALHEIA AQUELA ABONADA PELO INTERESSE PUBLICO, EM SEU MAIOR GRAU DE COMPREENSÃO E AMPLITUDE. A ANÁLISE DA MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO, REVELANDO UM MAU USO DA COMPETENCIA E FINALIDADE DESPOJADA DE SUPERIOR INTERESSE PUBLICO, DEFLUINDO O VÍCIO CONSTITUTIVO, O ATO AFLIGE A MORALIDADE ADMINISTRATIVA, MERECENDO INAFASTAVEL DESFAZIMENTO. 2. NO CASO, EMBORA GUARDANDO A APARÊNCIA DE REGULARIDADE, RESSALTADO O DESVIO DE FINALIDADE, REVESTINDO-SE DE ILEGALIDADE DEVE SER ANULADA A RESOLUÇÃO CONCESSIVA DO AUMENTO DA REMUNERAÇÃO. 3. RECURSO IMPROVIDO’. (REsp 21156/SP, Rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/09/1994, DJ 10/10/1994, p. 27106 – salvo quanto aos destaques).”

 

“A farta prova oral e documental produzida no presente feito não deixa qualquer margem a dúvidas de que os Apelados de fato se reuniram com os guardadores de veículos atuantes na localidade e, portanto, sabiam da sua atuação – o que bastaria a se lhes impor legalmente o dever funcional de providenciar que aquelas pessoas fossem autuadas e encaminhadas aos órgãos de assistência social do Município – e que se não trataram, a cada uma das partes, prestações e contra-prestações propriamente ditas, ao menos ajustaram que a Secretaria Municipal de Esportes passaria a aceitar doações de valores sabidamente oriundos do exercício da atividade ilegal de guarda de veículos, vertidos ao proveito daquele órgão por meios totalmente irregulares, tais como o pagamento de dívidas contraídas pela referida secretaria.”

 

“Isso, ressalve-se, já havia sido afirmado pela sentença, conforme se percebe do seguinte excerto daquele aresto: ‘O entorno do Estádio Regional Willie Davids voltado para a Avenida Tamandaré constitui uma expressiva área pertencente ao Município de Maringá, mas que, por ser completamente aberta à via pública e também por ter o piso pavimentado, os veículos estacionam no lugar durante eventos do estádio, o que atrai guardadores de carros, pessoas que supostamente vigiam os veículos automotores alheios na ausência do dono e depois pedem uns trocados em retribuição. A idéia dos réus foi a de combinar informalmente com os guardadores de carros que determinada parcela do montante que seria arrecadado fosse espontaneamente repassada à Secretaria de Esportes’.”

 

“Vale dizer, os Apelados perpetraram condutas tanto comissivas (deixando de cumprir ao dever que lei os impunha) quanto omissivas (praticando negócio ilícito quanto a seu objeto e clandestino quanto sua forma) que vieram de encontro aos mais basilares princípios da administração pública, em especial a legalidade e a publicidade, desviando-se por completo da finalidade pública que orienta toda e qualquer regra de competência, realizando plenamente o tipo objetivo descrito no inciso I do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa.”

 

“No que toca ao chamado elemento subjetivo (ou anímico) do ato de improbidade – trazido a discussão tanto em contrarrazões de apelação12 quanto em parecer ministerial -, é inegável também que os agentes atuaram munidos do dolo que se exige à pratica dessa espécie de ilícito.”

 

“Esse dolo do administrador, lembra MAZZILLI, se realiza na ‘vontade genérica de fazer o que a lei veda, ou a de não fazer o que a lei manda’ e prescinde de qualquer especial motivo, quer mesmo o de beneficiar a si ou a outrem com seu ato, bastando que coexistam a consciência e a vontade de se desviar da conduta preceituada pela norma.”

 

“Nos dizeres de FÁBIO MEDINA OSÓRIO: ‘O dolo administrativo não se pode confundir com o desejo de enriquecimento ilícito ou de lesão ao erário, porque este só é um dos blocos normativos da LGIA. O dolo abrange os elementos factuais e jurídicos da conduta proibida, alcançando a legislação integradora e a norma matriz. Pretender enriquecer-se ilicitamente ou lesionar o erário é apenas a consequência de uma conduta que envolve, ou pode envolver, sinais externos de intencionalidade em relação a determinados fatos e regras inerentes ao proceder ilícito, cuja lógica intrínseca, por mais flexível que seja, não pode ser ignorada ou desprezada pelos intérpretes e operadores do direito. Um administrador atua, ou pode atuar, dolosamente quando, de modo deliberado, vulnera, porque quer vulnerar, normas legais para satisfazer fins ilícitos, sejam públicos ou privados. O estilo autoritário do administrador que atropela o Estado de Direito, eis aí algo que pode marcar o dolo administrativo. Essa espécie de dolo dá uma configuração peculiar aos ilícitos de favorecimento indevido de interesses, porque acaba afastada da rígida ideia do enriquecimento ou das más intenções. Alguém dotado das melhores intenções pode atuar dolosamente, na persecução de fins públicos diversos daqueles encampados pela regra de competência. É claro que o dolo também se fará presente em tais hipóteses. (…) Quando se percebem sinais de má-fé, ou de ignorância inescusável e grosseira, emergem sinais de atuação dolosa. Não se trata de um dolo tradicional, uma intenção necessariamente ostensiva, ou vinculada à perseguição de objetivos de enriquecimento indevido. O dolo de que se cogita aqui é mais sutil, sofisticado, delineando posturas autoritárias, prepotentes, vingativas, rancorosas ou simplesmente estúpidas. De uma forma ou de outra, e ainda que se faça presente o chamado interesse secundário da Administração, o agente público pode vir a ser censurado por ato ímprobo, uma vez presentes os requisitos da tipicidade’.”

 

“Os elementos de convicção carreados aos autos, quando tomados em cotejo, deixam claro que os Apelados sabiam estar atuando à margem da lei, razão pela qual adotaram a mais completa clandestinidade a seus atos, atuando sem qualquer respeito às formalidades e à publicidade de que devem se cercar os atos administrativos, mascarando a maneira pela qual se dava a entrada destes valores nos cofres da secretaria e subtraindo-se a todas as formas de controle por parte da sociedade e da própria Administração Pública.”

 

“Atuaram, pois, dolosamente e portanto realizaram também o tipo subjetivo da conduta ímproba.”

 

“Assim, os três Apelados […], por meio das condutas omissivas e comissivas antes relatadas, incorreram no ilícito de improbidade descrito no artigo 11, inciso I, da Lei n.º 8.429/92, devendo lhes ser imputadas as sanções – previstas no artigo 12, inciso III, da referida lei -, cabíveis a cada caso na proporcional e razoável medida da reprovabilidade de suas condutas16, sem se olvidar, para tanto, do caráter exclusivamente extrapatrimonial do dano perpetrado e da ausência de proveito econômico aos agentes em razão do ato praticado (parágrafo único do artigo 12).”

 

“A todos os recorridos será, desde logo, excluída a incursão na pena de ressarcimento do dano, eis que a lei, aqui, nitidamente intenta a recomposição de danos materiais ao erário e – como já afirmado outrora – a lesão apurada nos autos ficou adstrita ao âmbito extrapatrimonial.”

 

“Fica também excluída a pena de suspensão dos direitos políticos, uma vez que, segundo entendimento já consolidado no Superior Tribunal de Justiça, a aduzida sanção é a mais drástica das penalidades estabelecidas nos róis do artigo 12 da Lei n.º 8.429/92, devendo ser aplicada tão somente naqueles casos de maior gravidade, adjetivo que não pode se atribuir aos fatos descritos nos autos.”

 

“As demais sanções serão objeto de individualização.”

 

“Ao primeiro apelado […] porque superior hierárquico dos demais (cabendo-lhe, assim, as atividades de ordenação, controle e sanção em meio à estrutura do órgão) e identificado em diversos depoimentos como a pessoa a quem competia a coordenação do ajuste, cabe uma dosagem maior de pena. Por seus atos, há de responder com: i) a perda da função pública – se dela ainda for mandatário; ii) multa civil equivalente ao décuplo da remuneração que percebia ao tempo dos fatos; e iii) a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.”

 

“Ao segundo apelado […], que contribuiu materialmente para a realização do ato – tendo inclusive percebido diretamente o repasse de valores -, são cabidas as penas de: i) multa civil em valor correspondente ao sêxtuplo de sua remuneração à época e ii) proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.”

 

Ao terceiro apelado […], “por haver contribuído de maneira muito similar ao segundo, são igualmente cabíveis as penas de: i) multa civil em valor correspondente ao sêxtuplo de sua remuneração à época e ii) proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos”.

 

“Finalmente, porque revertido o resultado da demanda, deverão os Apelados, ainda, responder pelas despesas processuais, uma vez que passaram à condição de sucumbentes na demanda.”

 

“Razões pelas quais, voto pelo conhecimento e parcial provimento do recurso, para condenar os réus a responderem pela prática do ato de improbidade descrito no artigo 11, inciso, imputando-lhes as sanções do artigo 12, IIII, ambos da Lei n.º 8.429/92, cabíveis segundo juízo de razoabilidade e proporcionalidade.”

 

A sessão de julgamento foi presidida pela desembargadora Regina Afonso Portes (com voto), e dela participou a juíza substituta em 2.º grau Astrid Maranhão de Carvalho Ruthes. Ambas acompanharam o voto da relatora.

 

(Apelação Cível n.º 826698-6)

 

(Fonte: TJ/PR)

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