No ponto mais alto da Rua Nova Tirol, em Piraquara, ergue-se um marco que atravessa o tempo: a igreja do Novo Tirol, também conhecida como Igreja Nossa Senhora da Assunção. Fundada em 1878 por imigrantes vindos das províncias italianas de Trento e do Tirol, a construção sobrevive há mais de um século como símbolo da Colônia Imperial Santa Maria do Novo Tirol da Boca da Serra, preservando a memória das primeiras famílias que ali se estabeleceram.
Como muitos centros católicos da época, a igrejinha nasceu simples, com uma capela menor construída com materiais modestos. Com o crescimento da comunidade, ergueu-se o templo principal, que permanece de pé até hoje. Mesmo após reformas recentes, pequenas faixas de parede sem cobertura de tinta ainda revelam a pintura original, lembrando outro marco da história local: os relevos da Serra do Mar, que deram nome à comunidade.
No altar, a imagem da padroeira, trazida diretamente da Itália, também resiste ao tempo. Em 2011, a Santa voltou à Europa para restauração e, ao retornar, foi recebida com celebração pela comunidade. O espaço da igreja alterna entre a memória dos trentinos e tiroleses e a história mais recente da Nova Tirol. Quatro sinos, também trazidos da Itália, permanecem como testemunhas do passado, ainda que em silêncio na maior parte do tempo, já que as missas regulares foram reduzidas. Atualmente, a diocese realiza celebrações na igreja apenas uma vez ao mês, exceto em datas especiais.
A poucos metros da igreja, em uma parte ainda mais elevada do terreno, está o cemitério da colônia, preservando a memória dos primeiros imigrantes. Apesar de recentemente reformado pela prefeitura, o espaço mantém seu caráter histórico. Hoje, não há possibilidade de expansão ou aquisição de novos terrenos. Os sepultamentos também são restritos às famílias que já possuem lotes com espaço disponível.
Nos dias em que a igreja permanece fechada, a responsabilidade pela manutenção recai sobre Maria Senter, descendente de uma das famílias fundadoras. É ela quem organiza os grupos de limpeza e abre o espaço para fiéis e curiosos, como a equipe da Tribuna do Paraná.
Comedida, Maria refere-se ao nome de sua família, gravado na placa de bronze que homenageia os fundadores, com a mesma naturalidade de quem comenta o clima do dia. A tradição continua sendo parte da rotina daqueles que optam por permanecer na região. Todos conhecem a origem de quem mora em Novo Tirol. A pergunta inevitável não é “de onde você vem?”, mas sim: “Qual sua família?”
Quem vem…
Quando chegaram, o território que hoje é Piraquara ainda fazia parte de São José dos Pinhais. Pouco tempo depois, em 1885, a povoação foi elevada a freguesia com o nome de Senhor Bom Jesus de Piraquara, e, em 1890, tornou-se vila batizada de Deodoro, em homenagem ao marechal Manuel Deodoro da Fonseca. Em 1929, a vila voltou a se chamar Piraquara. O pioneirismo da ocupação dos colonos foi um pontapé para o desenvolvimento da região, que não tardou a receber novos empreendimentos após o início da vila dos colonos.
Entre as famílias que ainda mantêm raízes no local está a de Luci Jacomel, descendente dos primeiros italianos de sobrenome Jacomelli/Giacomelli, que chegaram ao Brasil pelo porto do Rio de Janeiro. Após quarenta dias de viagem, a família seguiu rumo a Morretes, no litoral do Paraná, mas, insatisfeitos com o clima quente, subiram a serra e se estabeleceram em Nova Tirol.
“As condições da região eram difíceis. Eles vinham de áreas serranas, frias, e não se adaptaram ao calor do litoral. Então, todas as 59 famílias seguiram para a serra e se fixaram ali”, conta Luci, reconstituindo a trajetória de seus antepassados. A subsistência das famílias estava baseada na agricultura, cultivando espécies semelhantes às de Trento. Já em 1880, os preparativos para a primeira grande transformação da região começaram: a construção da Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, que mudaria definitivamente a dinâmica local.
… E quem vai
Em poucos anos, as atividades ferroviárias começaram a transformar a região. Em 1885, o entorno da estação da Estrada de Ferro se desenvolvia gradativamente, atraindo pessoas de diferentes partes do Paraná, do Brasil e até do exterior. Famílias como a de Luci Jacomel passaram a ser empregadas na construção da ferrovia, primeiro indício do que o futuro reservava à colônia.
Mais antiga que o próprio município, a Colônia Santa Maria não apenas forneceu mão de obra, mas também se tornou um elo essencial no projeto ferroviário que conectaria Curitiba ao litoral. No início, a proposta original previa que a estrada de ferro passasse diretamente pela colônia. “Os engenheiros, irmãos Rebouças, decidiram alterar o traçado. Consideraram que seria necessário construir mais túneis e pontes devido ao relevo acidentado. Assim, a ferrovia acabou beneficiando mais o Centro de Piraquara, ao redor do qual a cidade cresceu, como acontece com cidades litorâneas em torno de portos”, explica Jefferson Favoreto, guia de turismo de Piraquara.
O entorno da ferrovia se tornou ponto de comércio e convivência, enquanto a migração pendular transformou a colônia em um refúgio de descanso para quem vinha trabalhar na cidade. Porém, quase cem anos depois, outro capítulo marcaria a história de Novo Tirol: a construção da Barragem Piraquara II. Iniciada em 2003 e inaugurada em 2008, a obra provocou um novo êxodo, realocando famílias e transformando a paisagem da região.
Pouco antes da barragem, a família de Maria Senter ainda residia na parte mais baixa do relevo, mas foi transferida para um ponto mais alto pela Sanepar. A mudança foi decisiva para a continuidade das famílias na região. Grande parte optou, novamente, por se retirar da colônia. “A barragem alagou propriedades, áreas de plantio e riachos. Isso levou muitas famílias a se mudarem. Muitas venderam seus terrenos para quem queria construir casas de campo ou chácaras de lazer”, recorda Jefferson.
Com capacidade de 21 milhões de metros cúbicos de água, a barragem é uma das quatro que compõem o sistema de abastecimento de Curitiba, desempenhando papel estratégico na regulação hídrica da região. Além da barragem, investimentos em infraestrutura ajudaram a Colônia a abrir novas perspectivas. A revitalização e pavimentação da Estrada Nova Tirol, principal via de acesso, foi concluída em 2019, fruto de parceria entre a Secretaria de Estado da Agricultura e Abastecimento (SEAB) e a Prefeitura de Piraquara, totalizando R$ 3,8 milhões. Em 2020, a cabeceira da ponte sobre a barragem recebeu mais R$ 1,1 milhão em melhorias.
Com a barragem e a infraestrutura aprimorada, a Colônia Santa Maria entrou na rota do turismo municipal e estadual, atraindo visitantes interessados na natureza, na história e no lazer. O ponto turístico se destaca pela proximidade com o Morro do Canal, o Parque da Serra da Baitaca e o Caminho do Itupava. “Hoje, o turismo é o principal motor. Alguns cafés e quiosques já recebem visitantes, principalmente cicloturistas. Todo final de semana, há ao menos cem pessoas pedalando pela Colônia. Nossa vocação é o turismo de aventura”, afirma Jeffersom.
O local ganhou nova identidade: não apenas preservação ambiental, mas também histórica, cultural e social. Tenta-se manter vivos os costumes dos colonos, assim como da Aldeia Indígena Araçaí, de etnia guarani, isolada dentro do parque. No entorno, quem vive na região, ainda luta para manter viva a memória daqueles que foram os primeiros.
Memória viva
Ao contrário dos visitantes que passam pela Colônia apenas para apreciar a paisagem, aqueles que permanecem se contentam com a vida bucólica, imersos na tradição daqueles que chegaram primeiro. Mesmo não residindo mais na região há anos, Luci Jacomel observa a história de seis a sete gerações de sua família a partir de lembranças vívidas, feitas de rituais e hábitos que, aos poucos, vão se perdendo com o tempo.
A tradição, hoje, reside nos detalhes. Desde a fé fervorosa que ainda orienta encontros religiosos até a polenta servida nas reuniões familiares, cada gesto carrega o peso da memória. “Minha avó paterna morava conosco e fazia polenta cozida. Passava uma hora inteira mexendo o fubá no fogo. Depois, colocava a massa em uma tábua redonda, e nós, quando crianças, torcíamos para que caísse, mas nunca acontecia. Era tudo na medida certa”, recorda Luci, descrevendo com carinho a primeira memória que lhe conecta à tradição da família.
Já Dona Maria, que permanece firme no território da Colônia, vive inteiramente imersa no cotidiano local. “O único incômodo são os jacus, que logo cedo pedem milho”, comenta. Para ela, a história da região se mantém viva por meio das edificações conservadas. “O pessoal quer contar a história, mas sem essas construções, não há história”, conclui, relembrando parte da memória perdida.
Mesmo com relatos orais transmitidos de pais para filhos e de avós para netos, a comunidade enfrenta desafios para manter viva a memória que insiste em se esvair. Para Luci, a tradição pode ser preservada de forma simples: com gratidão.
“Gratidão por tudo o que fizeram e nos deixaram. Sempre participo das festas e das missas porque é uma forma de reconhecimento e retribuição a todo o esforço desses imigrantes quando chegaram aqui. Se hoje temos educação, uma casa e uma família estruturada, é graças à perseverança deles”, completa. Para a servidora aposentada, entre o passado e o presente, a memória mais vívida ainda está em conhecer a origem de seu sobrenome.
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