Homenagem à avó

Doce de leite premiado de Curitiba mistura ingrediente especial e memória afetiva

Letícia Vilas Boas Nogueira criou a Nita Cozinha de Família e uma receita única de doce de leite em homenagem à avó. Foto: Átila Alberti | Tribuna do Paraná

Na cozinha da curitibana Letícia Vilas Boas Nogueira, o aroma prega peças em quem não está acostumado com a produção da empreendedora. O cheiro do doce de leite em formação nas panelas transporta imediatamente o visitante à infância, lembrando os tempos em que as matriarcas da família preparavam receitas para o café da tarde. A versão de Letícia, que enche os potes da Nita Cozinha de Família – marca paranaense de produtos artesanais que atende a Grande Curitiba -, leva um ingrediente especial que não é tão secreto: o cumaru.

Formada em Gastronomia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Letícia descobriu o cumaru durante as experimentações da graduação, especialmente em receitas que utilizavam leite. “Eu percebia que algumas combinações funcionavam muito bem. Então, quando comecei a fazer meu doce de leite, quis colocar um pouco da minha personalidade na receita”, compartilha a cozinheira.

O cumaru, também conhecido como a baunilha brasileira, é uma especiaria amazônica de aroma único e marcante. É esse cheiro que preenche toda a cozinha da Nita Cozinha de Família. “O cumaru já é muito utilizado em sobremesas e cafés. Desde o começo, sabia que ia funcionar muito bem, porque é uma combinação perfeita. Muitas pessoas comentam que a especiaria traz essa memória afetiva do cheiro de biscoito saindo do forno”, explica Letícia.

O aroma no ambiente permanece por horas, já que cada leva de doce de leite precisa ferver por cerca de 7 horas antes de chegar aos potes, sem qualquer atalho no processo artesanal. “Existem máquinas e equipamentos modernos, mas aqui fazemos tudo na panela, mexendo manualmente com a colher e mantendo o método todo artesanal”, destaca a empreendedora.

Foto: Átila Alberti | Tribuna do Paraná

Sozinha, Letícia se desdobra para atender a demanda de todas as receitas. Para dar conta do volume de produção, todas as bocas do fogão ficam ocupadas com panelas de leite fervendo com a especiaria. Por dia, a cozinheira processa cerca de 90 litros de leite, que se transformam, em média, em 200 potes de 300g de doce, prontos para as prateleiras e para encantar os consumidores.

À moda das matriarcas 

A sensação de reviver os tempos na casa da avó ao pisar na cozinha de Letícia não é por acaso. A memória é a essência da marca e o que dá vida a cada receita. Criada em uma chácara, Letícia recorda a infância em meio ao cheiro do leite fresco, quando a mãe aproveitava o leite das vacas da propriedade para preparar em casa o complemento do café da tarde.

“O doce que ela fazia era totalmente diferente, mais clarinho e com um jeito só dela”, relembra. Diferente do que muitos podem imaginar, o nome da marca, Nita, não tem relação direta com Letícia. Ela não é a Nita. Na verdade, o nome é uma homenagem à avó, outra matriarca da família, que faleceu ainda na adolescência da empreendedora.

Desde 2020, quando as primeiras embalagens da receita chegaram às prateleiras, Letícia assumiu essa identidade: agora, de certa forma, também é um pouco Nita. A escolha do nome foi uma forma de manter viva a memória da avó e de incorporar essa referência afetiva à marca.

“A ideia sempre foi oferecer uma comida mais afetiva, que preservasse as receitas de família. Minha avó paterna, Anita, trouxe muito disso para a minha vida. Ela é minha referência de aconchego”, explica Letícia.

O nascimento do próprio negócio

A trajetória de Letícia na gastronomia começou muito antes da faculdade. Iniciada em 2018, sua formação acadêmica foi construída sobre uma prática que já vinha desde os 14 anos, quando ela passava horas na cozinha ajudando, mexendo panelas e preparando pratos. Esse contato precoce com o ambiente culinário acabou definindo o caminho natural após a graduação: seguir para cozinhas de restaurantes especializados e até mais sofisticados.

Mesmo jovem, com 29 anos, Letícia construiu um currículo sólido. A cozinheira passou por estabelecimentos renomados, como o restaurante Ibérico, o bar japonês Chō Street Food, o restaurante Nomade e, finalmente, o restaurante Kitsune, comandado pelo chef André Pionteke, onde nasceu a ideia da Nita Cozinha de Família.

No início da pandemia da covid-19, Letícia dividia a semana entre a cozinha do Kitsune e o próprio projeto. Três dias eram dedicados exclusivamente ao restaurante e os outros eram reservados ao desenvolvimento de suas receitas. “O primeiro lugar que coloquei meu doce para vender foi lá. Tinha prateleirinha que eu colocava os produtos e os clientes compravam”, relembra.  

O doce de leite Nita também ganhou destaque no cardápio do restaurante. A sobremesa Bao frito, bastante apreciada pelos clientes, levava como recheio o doce produzido por Letícia. Essa visibilidade funcionou como incentivo para que ela se dedicasse integralmente ao próprio projeto, deixando definitivamente as cozinhas de restaurante.

“Foi um bom ambiente para começar o negócio. Quando percebi que não dava mais para conciliar os dois, mantivemos uma parceria positiva. Um tempo depois, voltei a trabalhar em alguns projetos com ele [o chef], mas de forma pontual”, explica Letícia.

A ‘união de ingredientes’ do cooperativismo

Atualmente, Letícia produz os produtos dentro da CooperTrentina, a Cooperativa de Processamento Alimentar e Agricultura Familiar Solidária de Piraquara. A fábrica, que antes funcionava em uma propriedade da família em São José dos Pinhais, na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), está agora instalada logo após a administração da cooperativa, em um ponto mais alto do relevo da Rua Nova Tirol.

Letícia realiza produção na Cooperativa de Processamento Alimentar e Agricultura Familiar Solidária de Piraquara. Foto: Átila Alberti | Tribuna do Paraná

Além dos produtos da marca Nita, a cooperativa abriga diversos outros produtores, incluindo uma vinícola, produtores de artesanato, de leite e de hortaliças, entre outros. O leite utilizado por Letícia, processado pela marca Clac, passa pelas etapas de beneficiamento dentro da cooperativa antes de chegar às panelas para a fervura prolongada do doce de leite. O leite é transformado em produtos pasteurizados, iogurtes e creme de leite, que chegam inclusive às escolas municipais da região.

O convite para integrar a cooperativa surgiu por meio da Associação de Produtores de Queijos e Derivados do Leite do Leste do Paraná Artesanal (AproQueijo), após uma rodada de conversas sobre logística e extensão de negócios. “Esse local é ideal para manter uma produção artesanal que seja viável comercialmente, sem perder o cuidado com cada etapa do processo”, diz Letícia.

Para a cozinheira, a parceria com a cooperativa oferece mais do que espaço físico: possibilita trocas entre produtores, facilita a gestão do negócio e assegura a procedência e a qualidade dos insumos. “Como cozinheira, sempre valorizei a artesanalidade, a qualidade dos produtos e o trabalho dos produtores. Sabemos que, para isso acontecer, precisamos fazer nossa parte e reconhecer a importância da matéria-prima em cada receita”, compartilha.

Melhores receitas de doce de leite do Brasil

A proximidade com outros produtores e com a região ajudou os produtos de Letícia a conquistarem rapidamente o gosto da vizinhança. Os compradores assíduos sabem que basta enviar uma mensagem pelo WhatsApp e a própria cozinheira realiza a entrega dos doces no local indicado.

Com a base de contatos organizada, Letícia também conseguiu expandir a presença dos produtos em outras prateleiras, alcançando cidades como Curitiba, São José dos Pinhais e Campo Largo. Entre os pontos de venda, está a Chico Queijos, já conhecida da Tribuna do Paraná. Além das lojas, a receita de Letícia continua presente em cardápios afora. No Manifesto Café, por exemplo, o doce de leite é ingrediente principal do Moca de doce de leite, mantendo a tradição iniciada no Kitsune.

O reconhecimento do paladar da cozinheira não se limitou a lojistas e restaurantes locais. Em julho, Letícia recebeu a medalha de bronze no VIII Prêmio Queijo Brasil, colocando a marca Nita entre as melhores receitas de doce de leite do país. “Receber essa premiação é um reconhecimento e uma confirmação de que estou no caminho certo”, celebra a empreendedora.

A medalha serviu como impulso definitivo para o negócio. Apesar do crescimento, Letícia mantém uma expansão calculada quase milimetricamente. “Chega em um certo momento que você cresce muito e, com isso, fica cada vez mais difícil manter o processo. Um dos meus esforços é fazer com que a Nita cresça o máximo possível dentro do que acredito ser um produto de qualidade para oferecer às pessoas”, explica.

Com os pés no chão, a humildade é toda de Letícia. Para quem conhece e acompanha a marca, sobra apenas orgulho de se gabar. Azar dos outros mineiros, mas um dos melhores doces de leite do Brasil é, na verdade, paranaense.

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