Convivência entre pais e filhos

Mal se encerraram os movimentos de mastigação da santa comida do jantar, Daniel escafedeu-se para o quarto, fechando a porta.

Rosenilde e Alfredo trocaram olhares de interrogação, mas nada falaram na frente das crianças, entretidas em brincar com a sobremesa de gelatina multicolorida, suave e adaptável aos dedinhos espetados, que se intrometiam no seu interior, formando buracos e craterizando todo o prato. Os risos e exclamações de júbilo encobriam a preocupação dos pais, como uma nuvem carregada de água prenuncia a tempestade.

Alfredo não se conteve e com um tapa na mesa interrompeu a algazarra, e suspendeu o tempo e a porções de gelatina em pontas de dedos, colheres, cantos de mesa e entredentes dos filhos. Foi uma fração de minuto. Ao silêncio abrupto seguiu-se uma mastigação silenciosa, movimentos contidos e medidos. Aos poucos, as três crianças também deixaram a mesa e esconderam-se sob a luz protetora da televisão.

Alfredo e Rose (gostava mais dessa redução, que glamurizava o nome rejeitado) puderam, em voz baixa, comentar o comportamento de Daniel. Há dias um tanto alheio, há dias expressando-se em monossílabos ou gestos ríspidos.

Dava-se que a tal adolescência chegara? Comadre Didu, mais experiente, já alertara para os desacertos dessa idade. Mesmo que Rose e Alfredo tivessem argumentado que não lembravam dessa idade confusa em suas próprias existências, Dona Didu, mais seca e definitiva, desconsiderou o aparte.

– Vocês se preparem: problemas à vista!

O casal ficou em silêncio, tanto pela negação de sua história, quanto pelo temor da ameaça contida na fala da comadre.

Os dias passaram e o menino continuava inquieto. Será que essa tal adolescência tinha remédio? Partiram para a investigação.

A professora confirmou o ar ausente do menino durante as aulas. A amiga (em processo de virar namorada) queixou-se de abandono. O padre aconselhou paciência. A mãe de Rose, mesmo sem ser consultada, saiu-se com uma estrondosa acusação: ?Isso é resultado da liberdade que vocês dão. Sejem severos que vocês vão ver a mudança?. O médico da família, Dr. Oscar Romero, esclareceu: ?Adolescência é uma fase da vida. É assim mesmo. O menino passa por mudanças de guri para homem. Não façam nada, deixem o menino tranqüilo, que tudo passa. Por vezes, os amigos ajudam?.

Amigos… boa idéia! Os pais de Curió e do Benê poderiam saber alguma coisa a respeito.

– Alô, seu Valdir? Curió lhe falou do Daniel?

– Que é que os moleques fizeram? – a voz do outro lado era assustada.

– Nada, fique tranqüilo! É que Daniel está esquisito, com a tal de adolescência…

– E eu com isso? Curió, vem cá!

Enquanto o menino dizia e repetia que não sabia de nada, que Daniel continuava o mesmo etc., etc. Alfredo agradeceu, e uma ruga a mais se formou em seu rosto.

 – Será que ele está com doença grave? Hepatite, dengue, febre amarela? Meu Deus! Drogas!

Rose estava à beira de um ataque de nervos. Lágrimas antecipadas surgiram nos olhos ao pensar no filho largado no sofá, sem forças, sem idéias, morto vivo. A imagem foi tão poderosa que se lançou em direção à porta do quarto do menino. Os dedos trêmulos conseguiram fazer a madeira emitir sons abafados ao baterem.

– Huuuum! O que é?

Ouviu o som abafado, que imaginou fosse a reação a uma dose letal de entorpecente. Com sinais nervosos convocou o marido. Juntos tentaram novamente.

– Posso ficar sozinho, sossegado em meu canto?

Não havia dúvida: a repórter da televisão fora clara. Sintomas como falta de apetite, sonolência, recusa do convívio familiar denunciavam o vício. Rose já pensava em procurar o médico, em se informar sobre clínicas de recuperação, em cancelar a matrícula na escola, em… em… As pernas tremiam, o ar começava a faltar. Num gesto brusco, abriu a porta e invadiu o quarto do menino. O seu Daniel a droga não vai levar.

Sobre a cama, espalhadas, uma quase dezena de revistas, abertas, coloridas, sensualmente atraentes. No meio delas, arfante, Daniel olhou para a mãe, ainda com os olhos alimentados de fotos de mulheres sorridentes, paisagens deslumbrantes, textos convidativos. Sobre a mesa de estudos, em meio a livros e compêndios, obesos com tantos marcadores, um caderno aberto. Nele, uma pergunta piscava olhos desafiadores: ?O que é o paraíso??.

Desafiado pela proposta da professora, Daniel vivia seu primeiro drama filosófico e teológico. Em seu entender, tinha que ser um lugar distante. Uma casa em constante agitação como a sua não poderia abrigar a criação dessa maravilha. Escondeu a ilha paradisíaca e as fotos das mulheres cobiçadas que habitariam o éden terreno. Todas estariam no texto-resposta que preparava.

Olhou para a mãe, que, de repente, rejuvenescera, e pediu um hambúrguer bem passado, com pãozinho crocante.

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