Algumas palavras sobre Étienne de La Boétie(1)

O pensador Étienne de La Boétie deixou seu nome gravado com tinta indelével em uma importante página da história. O filósofo – que pensava o que escrevia -, consoante adverte seu melhor amigo, Michel de Montaigne(3), não deixou obra literária muito vasta, por assim dizer. Porém, ainda muito jovem escreveu um texto perene: ?Discurso da Servidão Voluntária?, que será objeto do presente escrito(4). Ao tomar da pena, o autor, de espírito aberto, livre e generoso, escreveu a respeito de palpitante tema: a tirania e servidão voluntária dos povos. Fez, pois, uma profunda análise acerca das pessoas que voluntariamente se sujeitam ao tirano [e o vocábulo é escrito em sentido amplo, pois o texto combate a tirania como um todo, sendo não menos certo que a obra não tem como alvo um único tirano]; que servem de bom grado e deixam de lado a liberdade, que se traduz em grande patrimônio do ser humano. O texto de La Boétie, a bem da verdade, e não obstante as várias críticas que tem recebido ao longo dos séculos(5), não era de modo algum um mero exercício retórico. Pelo contrário, nada tem de comum, no fundo, com as declamações dos retóricos, tal como bem escreve Angel J. Cappelletti(6). Com efeito, La Boétie era como o amigo Montaigne, pois não tinha o pensamento embotado e preferia ser importuno e indiscreto a ser adulador e dissimulado(7), e é certo que seus escritos sem dúvida não se traduzem em obra de partido, nem mesmo escreveu de forma facciosa para a defesa de católicos ou de huguenotes. A empresa de La Boétie, conforme dito alhures, não está adstrita [apenas] ao século XVI, bastando ler o escrito com isenção de ânimo e de forma não facciosa.

Nesse passo, o presente escrito se prestar a transcrever alguns excertos da obra em comento, a fim de demonstrar sua profundidade. Quanto ao tirano, assim escreve o pensador: ele se anula sozinho por sim mesmo, contanto que o país não consinta a sua servidão; não se deve tirar-lhe coisa alguma, e sim nada lhe dar; não é preciso que o país se esforce a fazer algo para si, contanto que nada faça contra si. Portanto são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois cessando de servidão estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal melhor dizendo, persegue-o(8). No que diz especificamente com a liberdade dos povos e a vontade do tirano se manter no poder, assim é o pensamento do autor: se para ter liberdade basta desejá-la, se basta um simples querer, haverá nação no mundo que ainda a estime cara demais, podendo ganhá-la com uma única aspiração, e que lastime sua vontade para recobrar o bem que deveria resgatar com sangue o qual, uma vez perdido, toda a gente honrada deve estimar a vida desprezível e a morte salutar? Como o fogo de uma pequena chama torna-se grande e sempre cresce, e quanto mais lenha encontra mais está disposto a queimar; e sem que se jogue água para apagá-lo, é só não pôr mais lenha que ele, não tendo mais o que consumir, consome-se a si mesmo e vem sem força alguma, e não mais fogo assim também, por certo, os tiranos quanto mais pilham mais exigem, quanto mais arruínam e destoem, mas se lhes dá quanto mais são servidos, mais se fortalecem, e se tornam cada vez mais fortes e dispostos a tudo aniquilar e destruir; e se nada s lhes dá, se nada se lhes obedece, sem lutar, sem golpear, ficam nus e desfeitos, e não são mais nada, como o galho se torna seco e morto quanto a raiz não tem mais humor ou alimento(9). E ainda quanto ao tirano, este subjuga os súditos uns através dos outros e é guardado por aqueles de quem deveria ser guardar, se valessem alguma coisa; mas, como se diz, para rachar lenha é preciso cunhas da própria lenha(10). Mas o autor falar de coisas boas, tal como a amizade: aprendamos pois uma vez, aprendamos a fazer o bem; levantemos os olhos para o céu ou para nossa honra e para o próprio amor da virtude; ou, para falar cientemente, para o amor e honra de deus todo-poderoso que é testemunha segura de nossos feitos e juiz justo de nossas faltas(11). Portanto, o autor não é um mero retórico, como se pode [eventualmente] pensar após uma primeira leitura de sua obra.

Por fim, cabe fazer constar um importante excerto do livro: os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, os gladiadores, os bichos estranhos, as medalhas, os quadros e outras drogas que tias eram para os povos antigos as iscas da servidão, o preço de sua liberdade, as ferramentas da tirania. Os tiranos antigos tinham esse meio, essa prática, esses atrativos para adormecer seus súditos sob o jugo. Assim, achando bonitos esses passatempos, entretidos por um prazer vão que passava diante de seus olhos, os povos abobados acostumavam-se a servir tão totalmente e até pior do que as criancinhas que aprendem a ler vendo as brilhantes imagens dos livros iluminados(12). Lendo o texto de La Boétie vem à mente uma obra mais recente, o texto de Guy Debord: ?a sociedade do espetáculo?.

Notas:

(1) La Boétie nasceu em 1530 e faleceu em 1563, sem completar 33 anos de idade. O jovem humanista, fervoroso católico e que viveu em pleno Renascimento, era tão apaixonado pelos grandes pensadores greco-romanos que aprendeu fluentemente o Grego e o Latim, a fim de, também, traduzir grandes escritos. Seu precoce falecimento de forma alguma o impediu de deixar para a posteridade um grande texto, e Montaigne foi decisivo para propagar o conteúdo da obra do melhor amigo. Ainda segundo Montaigne, o texto foi escrito quando La Boétie tinha apenas 17 ou 18 anos, mas há divergência quanto à data exata em que a obra foi escrita.

(2) LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da Servidão Voluntária. 4.ª ed., 2.ª reimpressão. São Paulo: Editora Brasiliense, 2001, p. 19. Tradução:Laymert G. dos Santos. Há no Brasil pelo menos uma outra edição do Contr?Un [como chamando por alguns posteriormente], editada pela Revista dos Tribunais, com tradução de J.Cretella Jr. e Agnes Cretella [2003].

(3) MONTAIGNE, Michel de. Páginas Escogidas. Seleção e Comentário de Pierre Villey. España: Ediciones Júcar, 1990, p. 106. Traducción de Enrique Díez-Canedo. Edición de Manuel Neila.

(4) Sendo que os excertos são extraídos do texto da Editora Brasiliense.

(5) Segundo alguns autores, o pensador La Boétie não apresenta as soluções para o que denomina de servidão voluntária, carecendo o texto de rigor científico, por assim dizer, pois somente escreveu a respeito dos efeitos da servidão voluntária. Consoante Marilena Chauí, o texto é um contra discurso. In – Discurso da Servidão Voluntária. 4.a ed., 2.ª reimpressão. São Paulo: Editora Brasiliense, 2001, p. 185.

(6) Texto constantes do prólogo do Discurso sobre la Servidumbre Voluntaria. 1.ª edição. Buenos Aires:Libros de la Araucária, 2006.

(7) MONTAIGNE, Michel de. Op. cit., p. 107.

(8) Op. cit., p. 14.

(9) Idem, p. 15.

(10) Idem, pp. 32-33.

(11) Idem, p. 37.

(12) Idem, p. 27.

Carlos Roberto Claro é professor [assistente II] de Direito Comercial do Centro Universitário Curitiba [graduação]; mestrando em Direito Empresarial pela mesma instituição de ensino; especialista em Direito Empresarial e membro do American Bankruptcy Institute [Virginia – USA].

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