Acordo de acionistas e o princípio da indisponibilidade

A Companhia de Saneamento do Paraná – Sanepar, constituída em janeiro de 1963, é uma sociedade de economia mista, de capital aberto, tendo portanto seu capital social dividido em ações negociáveis em bolsas de valores, sob a fiscalização da CVM (Comissão de Valores Mobiliários). Sociedades de economia mista, na clássica definição de Hely Lopes Meirelles, são pessoas jurídicas de direito privado, com participação do Poder Público e de particulares no seu capital e na sua administração, para a realização de atividade econômica ou serviço de interesse coletivo outorgado ou delegado pelo Estado. (grifou-se)

Em dezembro de 1997, a Lei Estadual n.º 11.963 autorizou o Estado do Paraná a alienar ações de sua propriedade no capital social da Companhia, devendo, contudo, deter um mínimo de 60% (sessenta por cento) do total do capital votante. Com fundamento na autorização legislativa antes referida, o Estado do Paraná alienou 39,71% das ações ordinárias para uma sociedade denominada Dominó Holdings S/A, da qual fazem parte o grupo francês Vivendi, a Construtora Andrade Gutierrez, o Banco Opportunity e a Copel.

Em 4 de setembro de 1998, o Estado do Paraná, acionista majoritário e controlador da Sanepar, e Dominó Holdings S/A, acionista minoritária, celebraram um acordo de acionistas.

Os acordos de acionistas, previstos no artigo 118 da Lei de Sociedades por ações, têm por objeto disciplinar o exercício do direito de voto nas Assembléias Gerais. Aplicam-se às sociedades de economia mista, e suas avenças têm força coercitiva, ao ponto de obrigar o presidente da assembléia, ou do órgão colegiado de deliberação da Companhia, a não computar o voto proferido com infração às suas estipulações, desde que não contrariem o ordenamento jurídico.

No caso, a pretexto de regular o exercício do direito de voto dos acionistas Estado do Paraná e Dominó Holdings S/A, o que se fez foi formalizar um pacto pelo qual o Estado do Paraná, pessoa jurídica de direito público, abdicou das prerrogativas inerentes à sua condição de pessoa administrativa, e na prática tormou nenhum o poder-dever de controle decorrente de sua participação majoritária no capital social da companhia mista.

Envolvendo todas as ações havidas pelo Estado do Paraná no momento da sua celebração, bem como aquelas que no futuro este venha a adquirir, dito acordo impôs ao Estado do Paraná a obrigação de votar em bloco (I.é, de conformidade com os interesses da Dominó Holdings S/A em qualquer alteração estatutária relativa ao objeto social, emissão de novas ações, competência, composição e fundamento dos órgãos sociais (Assembléia Geral, Conselho de Administração e Diretoria Executiva) e apuração dos resultados da Companhia (Incluindo a formação de reservas, fixação e distribuição de dividendos e juros sobre o capital próprio); emissão de debêntures; fusão, cisão, dissolução ou liquidação da Companhia; distribuição de dividendos em percentuais diverso do obrigatório; e remuneração dos membros do Conselho de Administração e da Diretoria Executiva.

Não fora o bastante, malsinado acordo virtualmente anula a maioria estatutariamente atribuída do Estado do Paraná, na composição do Conselho de Administração e na Diretoria Executiva da Companhia. Com efeito, muito embora o Estado do Paraná indique 5 (cinco) dentre os 9 (nove) membros do Conselho de Administração, o acordo (item 4.3) obriga o Estado a votar no sentido de estabelecer a competência do Conselho de Administração para os assuntos ali descritos. Como esta competência vem fixada nos Estatutos, que exige um quórum qualificado (7 conselheiros) para as matérias cruciais a que alude o artigo 14, º 2.º., c/c/ artigo 17 dos Estatutos, na prática, os 5 (cinco) conselheiros indicados pelo Estado dependem da concordância dos representantes do acionista minoritário para tudo o que de relevante se decida na Sanepar.

O Estado do Paraná passou a depender da anuência do grupo privado: a) para deliberar previamente à sua celebração sobre os contratos entre a Companhia e qualquer de seus acionistas ou empresas controladoras; b) alienação ou constituição de ônus reais; c) empréstimos e financiamentos; d) manifestar-se sobre relatório de administração e contas da Diretoria; e) escolha e destituição dos auditores independentes; f) destinação dos lucros; g) aprovação do plano de cargos e salários; h) voto em coligadas; I) distribuição de dividendos; j) pagamento de juros sobre capital próprios; k) reconhecer a dispensa ou inexigibilidade de licitação; i) aprovar tarifas; m) todos os demais casos omissos nos estatutos.

No âmbito da Diretoria o enredo se repete. A Companhia tem 7 diretores, sendo 4 indicados pelo Estado do Paraná. Porém, ante os termos do acordo de acionistas, os Diretores Superintendentes, de Operações e Financeiro serão eleitos entre nomes apresentados pela Dominó Holdings S/A. Todavia, por um estratagema decorrente do acordo de acionistas, os Diretores Indicados pelo acionista minoritário detêm o comando real da Companhia. Senão, vejamos. A gestão corrente da Companhia vem estatutariamente fixada num Plano de Negócios e Orçamento anual, ambos elaborados por 3 (três) diretores, a saber, o Diretor de Operações (indicado pelo acionista minoritário), o Diretor Financeiro (idem) e o Diretor Administrativo (este indicado pelo Estado do Paraná). Não havendo consenso entre estes 3 diretores a decisão será tomada por maioria (acordo, item 4.7.1). A maioria, porém, não dos membros da Diretoria Executiva; a maioria, porém, não dos membros do Conselho de Administração; a maioria, porém, não do capital votante. Mas uma estranha “maioria”, artificiosamente criada pelo acordo do acionistas: a maioria dos 3 diretores encarregados da elaboração do plano de negócios e do orçamento. E esta “maioria” pertence ao acionista minoritário.

Não são necessárias grandes digressões para que se possa saber quem tem, hoje, o controle real da Sanepar.

Tudo isso sem falar que a controvérsia entre as partes deverão ser resolvidas por meio de arbitragem, segundo as Regras sobre Conciliação e Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional de Paris…

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Ora, ao atrelar o exercício do direito de voto do acionista Estado do Paraná ao interesses da acionista minoritária, sociedade mercantil privada, o acordo de acionistas firmado em 4 de setembro de 1998 agride o princípio da indisponibilidade do interesse público, que na exata observação de Celso Antonio Bandeira de Mello, “significa que sendo interesses qualificados como próprios da coletividade, não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis.” Ou ainda, que “as pessoas administrativas não têm portanto disponibilidade sobre os interesses públicos confiados à sua guarda e realização.”

A fiscalização e controle da sociedade de economia mista da qual o Estado do Paraná, por disposição legal expressa, é o acionista majoritário e controlador, é mais do que mera prerrogativa da Administração Pública Estadual. Esta disponibilidade, permanentemente retida nas mãos do Estado, constitui verdadeiro poder-dever, um poder que por isso mesmo a Administração Pública não pode deixar de exercer, sob pena de responder pela omissão (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, pg. 61).

Assim, um ato bilateral que atribui ao acionista privado um poder de mando, controle e administração incompatível com o porte de sua participação acionária, com reflexos inevitáveis na própria persecução dos objetivos sociais da Companhia, afronta os princípios fundantes da atuação administrativa do Estado. Porque uma coisa é participar o minoritário da vida social da Companhia; outra, muito diversa, é a alternação do poder de controle do Estado sobre a empresa. Aquela seria legítima e até recomendável; esta, porém, está inquinada de ilegalidade manifesta. Que pode, e deve, ser reconhecida pela própria Administração Pública, através dos meios postos ao seu dispor pelo regime jurídico-administrativo.

Pedro Henrique Xavier

é professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná.

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