Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade material (II)

Também existe muita polêmica sobre o exato enquadramento dogmático do aborto anencefálico: haveria exclusão da antijuridicidade, da punibilidade ou da tipicidade?

Nosso Código Penal, no art. 128, como já sublinhado, prevê duas hipóteses de aborto permitido: o necessário, quando há risco de vida para a gestante (CP, art. 128, I) e o humanitário ou sentimental (quando a gravidez resulta de estupro? CP, art. 128, II). Não se pretende que o STF crie uma terceira modalidade de exclusão de punibilidade em relação ao aborto. Não é isso que se pede na ADPF citada. Sim, que ele declare que o aborto anencefálico não se enquadra nos tipos legais desse crime (contemplados nos artigos 124 e ss. do CP).

Mas sob qual fundamento isso seria possível?

A resposta só pode ser encontrada no âmbito da tipicidade material, que exige três juízos valorativos distintos: 1.º) juízo de desaprovação da conduta (cabe ao juiz verificar o desvalor da conduta, ou seja, se o agente, com sua conduta, criou ou incrementou um risco proibido relevante); 2.º) juízo de desaprovação do resultado jurídico (isto é, desvalor do resultado que consiste na ofensa desvaliosa ao bem jurídico) e 3.º) juízo de imputação objetiva do resultado (o resultado deve ser a realização do risco criado ou incrementado).

4. O aborto anencefálico não é um fato materialmente típico

A essa conclusão se chega quando se tem presente a verdadeira e atual extensão do tipo penal, que abrange (a) a dimensão formal-objetiva (conduta, resultado naturalístico, nexo de causalidade e adequação típica formal à letra da lei); (b) a dimensão material-normativa (desvalor da conduta + desvalor do resultado jurídico + imputação objetiva desse resultado) e (c) a dimensão subjetiva (nos crimes dolosos). O aborto anenfálico elimina a dimensão material-normativa do tipo (ou seja: a tipicidade material) porque a morte, nesse caso, não é arbitrária, não é desarrazoada. Não há que se falar em resultado jurídico desvalioso nessa situação.

A base dessa valoração decorre de uma ponderação (em cada caso concreto) entre o interesse de proteção de um bem jurídico (que tende a proibir todo tipo de conduta perigosa relevante) e o interesse geral de liberdade (que procura assegurar um âmbito de liberdade de ação, sem nenhuma ingerência estatal).

No aborto anencefálico parece não haver dúvida que o resultado jurídico (lesão contra o bem jurídico vida do feto) não é desaprovado juridicamente. Todas as normas e princípios constitucionais invocados na ação de descumprimento de preceito fundamental (artigos 1.º, IV – dignidade da pessoa humana -; 5.º, II – princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade -; 6.º, caput, e 196 – direito à saúde -, todos da CF) conduzem à conclusão de que não se trata de uma morte (ou antecipação dela) desarrazoada (ou abusiva ou arbitrária).

Não há dúvida que o art. 5.º da CF assegura a inviolabilidade da vida, mas não existe direito absoluto. Feliz, portanto, a redação do art. 4.º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz: ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. O que se deve conter é o arbítrio, o abuso, o irrazoável. Quando há interesse relevante em jogo, que torna razoável a lesão ao bem jurídico vida, não há que se falar em resultado jurídico desvalioso (ou intolerável). Ao contrário, trata-se de resultado juridicamente tolerável, na medida em que temos, de um lado, uma vida inviável (todos os fetos anencefálicos morrem, em regra poucos minutos após o nascimento), de outro, um conteúdo nada desprezível de sofrimento (da mãe, do pai, da família etc.).

Pode-se afirmar tudo em relação ao aborto anencefálico, menos que seja um caso de morte arbitrária. Ao contrário, antecipa-se a morte do feto (cuja vida, aliás, está cientificamente inviabilizada), mas isso é feito em respeito a outros interesses sumamente relevantes (saúde da mãe, sobretudo psicológica, dignidade, liberdade etc.). Não se trata, portanto, de uma morte arbitrária. O fato é atípico justamente porque o resultado jurídico (a lesão) não é desarrazoado (desarrazoada). Basta compreender que o ?provocar o aborto? do art. 124 significa ?provocar arbitrariamente o aborto? para se concluir pela atipicidade (material) da conduta. Esse, em suma, é o fundamento da atipicidade do aborto anencefálico.

Mas é preciso que se constate, com toda clareza, a inviabilidade do feto. Porque é essa inviabilidade (cientificamente certa) aliada a vários outros interesses relevantes em jogo (sofrimento da gestante, angústia, afetação de sua saúde mental e psicológica, dignidade humana etc.) que torna a antecipação do parto uma medida razoável. Fora das hipóteses de inviabilidade certa da vida, jamais se pode conceber o aborto.

Por isso mesmo, fetos deformados, fetos com doenças mentais, mongais etc., não podem ser eliminados arbitrariamente. Só se justifica a morte (antecipada) do feto cuja vida está totalmente anulada. Aborto anencefálico não é aborto profilático. Ninguém pode, por razões de profilaxia (de depuração da raça, por eugenia etc.), matar qualquer outra pessoa. Aborto profilático é crime. Já o anencefálico exclui a tipicidade material. Neste a vida do feto é inviável; naquele a vida do feto (extra-uterina) é viável. Nisso reside uma grande diferença entre tais situações.

Pouco importa o fato, bastante excepcional, de alguns raros fetos anencefálicos não morrerem dez ou vinte minutos depois do nascimento. Há casos em que o nascido dura semanas, às vezes um ou mais meses. Isso, entretanto, não invalida a premissa de que jamais qualquer um desses fetos veio a sobreviver. A inviabilidade da vida quanto ao anencefálico é absoluta e cientificamente certa. Essa é a razão de se não vislumbrar arbitrariedade na antecipação do parto.

Argumenta-se ainda que o melhor seria deixar a criança nascer, aproveitar dela alguns órgãos vitais importantes (para transplantes) e só depois esperar a sua morte. Essa é uma questão delicada, porque a extração de órgãos vitais só é permitida após a morte cerebral. O feto anencefálico conta com má formação do cérebro, mas não se pode afirmar a sua morte cerebral. Feto anencefálico tem vida cerebral. O cérebro é mal formado, mas funciona. Não é possível, destarte, enquanto o feto tenha vida, retirar-lhe qualquer órgão. Deve-se aguardar a morte cerebral para a extração de órgãos.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG – Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina) – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais ? www.lfg.com.br

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