A pena como processo de diálogo

Em sua Assembléia Geral de 17 de fevereiro de 2007, o Conselho da Fundação Internacional Penal e Penitenciária (FIPP) incumbiu o seu presidente, professor Georges Kellens, da Bélgica, de constituir um Comitê Permanente da América Latina para revisar e atualizar as Regras Mínimas para Tratamento dos Presos (1955). Esse grupo de trabalho é presidido pelo ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, tendo na vice-presidência o professor Eugenio Raúl Zaffaroni, ministro da Suprema Corte de Justiça da Argentina. A reunião de instalação das atividades do Comitê, ocorrida na cidade do Rio de Janeiro (28-30/11/2007), tem na pessoa da ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça, a coordenação científica; enquanto o relatório das conclusões está sob a responsabilidade do professor Douglas Duran Chavarria, membro da Corte de Justiça de São José da Costa Rica.

Um dos destacados participantes desse notável processo de revisão histórica é o professor Edmundo Oliveira, titular de Direito Penal da Universidade do Pará, jurista sênior e doutor em Direito Penal na Universidade de Sorbonne; professor pesquisador de Direito Penal Comparado na Escola de Direito da Universidade de Miami e representante no Brasil da Fundação Internacional Penal e Penitenciária, com sede em Berna (Suíça).

2. As Regras Mínimas da ONU

As Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Presos, adotadas em 1955 pela Organização das Nações Unidas, constituíram um notável documento de repercussão internacional para orientar a execução da pena privativa de liberdade e, em geral, para recomendar a aplicação de princípios humanitários em favor das pessoas detidas. Conforme Maia Neto,(1) as Regras tiveram a sua origem em normas formuladas pela Comissão Internacional Penal e Penitenciária e acolhidas, com algumas modificações, pela Sociedade das Nações, em 1934. Dissolvida a Comissão em 1951, a que se sucederia a Fundação Internacional Penal e Penitenciária, as suas principais funções foram transferidas para as Nações Unidas, que promoveram movimentos e atividades relacionadas com a prevenção do crime e a justiça penal. Aceitas por unanimidade e aprovadas no Conselho Econômico e Social pela Resolução n.º 663 C – de 30 de agosto de 1955, as Regras estabelecem os princípios de humanidade e do respeito à condição humana, os objetivos sociais e o desempenho administrativo, formando uma base coerente e efetiva para a administração dos sistemas penitenciários. Visam, ainda, estimular o esforço permanente para vencer as dificuldades práticas que se opõem à sua aplicação e traduzem os requisitos mínimos admitidos pelas Nações Unidas no mundo das prisões. Também objetivam a prevenção contra os maus tratos e, em especial, quanto à disciplina e aos meios disciplinares de coação nos presídios. Por ocasião do V Congresso da ONU (1975), o Conselho Econômico e Social, pela Resolução n.º 1.993 (LX), de 12 de maio de 1976, solicitou ao Comitê para Prevenção do Crime e a Luta contra a Delinqüência que estudasse o campo de aplicação das Regras Mínimas e apresentasse um conjunto de preceitos para sua efetiva aplicação. Em 13 de maio de 1977, através da Resolução n.º 2.076 (LXII), o Conselho Econômico e Social adotou a regra adicional n.º 95, que estende a aplicação das Regras Mínimas para proteger as pessoas detidas ou presas sem culpa formada, conferindo-se as mesmas garantias da pessoa condenada, mas sem a imposição de medidas de reabilitação(2).

3. As Regras Mínimas e a reinserção social

Na observação de Edmundo Oliveira, as Regras Mínimas instituíram (n.º 60-1) que o regime do estabelecimento penal ?procurará reduzir as diferenças que possam existir entre a vida na prisão e a vida livre, desde que tais diferenças contribuam para debilitar o sentido de responsabilidade do recluso e o respeito à integridade de sua pessoa?(3). O mesmo autor refere que a Declaração de Princípios da Associação Correcional Americana (Denver, 1960), reafirmou preceitos que desde 1870 orientavam o penitenciarismo norte-americano, salientando através do item XVI ?a necessidade dos criminosos, enquanto sob a jurisdição dos executores da lei e das agências correcionais, serem atendidos nos padrões geralmente aceitos de vida decente e relações humanas decentes?(4).

4. A influência das Regras Mínimas no sistema brasileiro

A Lei n.º 3.274, de 2 de outubro de 1955, dispondo sobre normas gerais do regime penitenciário, foi o primeiro diploma federal brasileiro a sancionar os princípios das Regras Mínimas da ONU, como se poderá verificar pelas seguintes disposições: a) Individualização da pena para o conhecimento da personalidade de cada sentenciado e proporcionar o tratamento penitenciário adequado; b) A educação moral, intelectual, física e profissional dos sentenciados; c) A assistência social aos sentenciados, aos liberados condicionais, aos egressos e às famílias dos mesmos e das vítimas; d) A necessidade do trabalho atender às circunstâncias ambientais de seu futuro emprego em meio urbano ou meio rural; e) Toda a educação dos sentenciados, levando-se em conta os índices psico-pedagógicos e orientada a sua vocação na escolha de uma profissão útil, objetivando readaptá-los ao meio social(5).

Muitas outras normas gerais foram estabelecidas na referida lei, em coerência com os princípios fundamentais oriundos das Regras Mínimas, que também exerceram influência em movimentos que iriam desaguar na criação da prisão-albergue, em face dos Provimentos do Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo (n.ºs XVI/65; XXV/66; LVII/70 e LVIII/70). O instituto da prisão-albergue foi consagrado no Código Penal de 1969/73(6); na Lei n.º 6.416, de 24 de maio de 1977; na Lei n.º 7.209/84 (nova Parte Geral do CP) e na Lei n.º 7.210/84 (Lei de Execução Penal). Na redação do diploma de 1969/73, essa modalidade de execução da pena privativa de liberdade possibilitava o processo de diálogo entre o condenado e a sociedade sob a moderação do Estado, nos seguintes termos: ?No regime de prisão-albergue, o condenado poderá exercer, fora do estabelecimento penal e sem vigilância, atividade profissional e freqüentar instituição de ensino, sujeito às condições especificadas na sentença de concessão do regime? (art. 40, § 1.º). Na orientação da Lei n.º 6.416/77, que alterou a Parte Geral do Código Penal quanto ao cumprimento das penas, a prisão-albergue foi definida como espécie do regime aberto e reservada para os condenados à pena privativa de liberdade não superior a 4 (quatro) anos, desde o início de execução (§ 5.º, do art. 30).

Também a doutrina nacional registrou as conquistas decorrentes das Regras Mínimas da ONU, ao tempo em que se conheciam as experiências pioneiras das prisões abertas. Conforme a Resolução apresentada ao XII Congresso Penal e Penitenciário de Haia (agosto de 1950), o estabelecimento aberto designa uma instituição penitenciária na qual as medidas preventivas contra a fuga não são constituídas por obstáculos, tais como muros, fechaduras, grades ou guardas suplementares(7).

O referido CP 1969/1973, previa expressamente o estabelecimento penal aberto em oposição ao estabelecimento penal fechado, de segurança máxima (art. 38). O primeiro tinha a seguinte definição: ?O estabelecimento penal aberto será instalado, de preferência, nas cercanias de centro urbano. Nele cumprirão pena, em regime de semi-liberdade, os condenados por tempo inferior a seis anos de reclusão ou oito anos de detenção, que sejam de escassa ou nenhuma periculosidade? (§ 3.º do art. 38).

A nova Parte Geral do Código Penal, instituída com a Lei n.º 7.209/84, prevê o regime aberto tendo como base a auto-disciplina e o senso de responsabilidade do condenado que deverá, fora do estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e os dias de folga (art. 36 e § 1.º). E a Lei de Execução Penal estabelece que a casa do albergado ?destina-se ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime aberto, e da pena de limitação de fim de semana? (art. 93). Relativamente à sua conformação material, a LEP dispõe: ?O prédio deverá situar-se em centro urbano, separado dos demais estabelecimentos, e caracterizar-se pela ausência de obstáculos físicos contra a fuga. Em cada região haverá, pelo menos, uma Casa de Albergado, a qual deverá conter, além dos aposentos para acomodar os presos, local adequado para cursos e palestras. O estabelecimento terá instalações para os serviços de fiscalização e orientação dos condenados? (arts. 94 e 95, caput e parág. ún.)

Pode-se afirmar que as Regras Mínimas motivaram e orientaram as reformas legislativas dos anos 50, 60 e 80 em nosso país, com a edição da nova Parte Geral do Código Penal (Lei n.º 7.209/84) e a instituição de uma lei federal autônoma de execução penal (Lei n.º 7.210/84).

5. Pena segregadora e pena ressocializadora

Procurando superar concepções extremadas e antinômicas que modelam os perfis dantescos da pena segregadora, por um lado, e a pena ressocializadora – como o carisma da ideologia da salvação, por outro – o pensamento contemporâneo vem concebendo a pena como um processo de diálogo entre o condenado e o Estado. Aquele não mais como simples objeto de medidas terapêuticas, porém como verdadeiro sujeito da execução.

A participação ativa do presidiário no programa de reinserção social pressupõe não somente que tal processo revela a voluntária adesão como também a passagem de um Direito Penal social para um Direito Penal que pretenda, também, ser democrático.

Em síntese muito expressiva, Calliess demonstra que tanto o Direito Penal como o direito positivo em geral constituem a estrutura dialogal de sistemas sociais e, por via de conseqüência, a pena é concebida como processo de diálogo entre o Estado e o condenado(8).

Essa perspectiva é extremamente importante e deve permanecer na fronte do movimento que se destine a retomar o sistema das sanções criminais com a adoção de alternativas para a punição da perda da liberdade.

A hipertrofia do sentido retributivo desvenda um pragmatismo inconciliável com o estádio da civilização contemporânea, posto que o Direito Penal não se pode caracterizar como o conjunto de princípios e regras destinadas exclusivamente à repressão dos comportamentos antagônicos aos mais relevantes valores do Homem, da comunidade e do Estado. Ele aparece aos olhos e ao coração de todos como a imagem de dupla face. E, por isso, não se compadece com as teorias absolutas que pretendem negar a capacidade e a reserva espiritual do ser humano.

O processo de diálogo que se deve realizar através da pena é particularmente relacionado com os programas assinalados pela ciência penitenciária e que idealisticamente pretendem a readaptação social do delinqüente. Tais programas compõem o tratamento, que é conceituado por Plawski como o conjunto de meios necessários para ajustar a personalidade do delinqüente com o fim de reinseri-lo em uma sociedade de homens livres(9).

Muito embora se possam opor sérias restrições aos projetos demiurgos assim como se contêm nas elaborações meramente formais, máxime quando se procura ligar a natureza da pena e os seus objetivos a evento futuro e incerto, não é possível, em outra perspectiva, impedir ou fechar os canais de aproximação que a comunidade e o Estado devem manter sempre abertos com o presidiário. Se na consciência jurídica atual a morte e a perpetuidade da reclusão constituem sanções cruéis e de raro emprego institucional, conclui-se que a perda da liberdade, por ser temporária, somente interrompe a fruição de alguns direitos, além de não extinguir os que não foram alcançados pela condenação. Em conseqüência, a garantia real destes direitos e a perspectiva da recuperação dos outros deve ser a base dogmática de uma execução penal finalísticamente orientada.

Já foi dito em outra oportunidade(10) que um novo rumo aberto neste marginalizado mundo dos cárceres poderá refundir no condenado a dimensão capaz de apresentá-lo à comunidade como um ser importante e convivente em harmonia com os padrões de honestidade e segurança e os valores que iluminam a personalidade. Mas o prisioneiro sofre diversos e atípicos castigos durante a provação da pena. Um deles, profundo e enlouquecedor, é o abandono que o conduz ao vazio, na aridez do mundo. Humano, porém, ele igualmente se parece com Adão e aguarda o toque do criador que a pintura de Michelangelo plasmou como símbolo de fé e esperança.

6. Natureza e alcance do processo de diálogo

Mas não é somente no interior dos presídios, em meio às confidências toleradas pela administração, que se torna imperioso o diálogo. Ele deve se constituir na ponte que une as barrancas em meio às águas de fluxo contínuo ou, então, na esperançosa jangada a se equilibrar em turbulentas águas de mares desconhecidos mas que poderá levar o náufrago a um porto seguro.

O diálogo, enfim, deve brotar e fluir na convivência livre através de medidas institucionais e não institucionais. Um grande e fecundo processo de interação poderá ser estabelecido em função do sursis, da probation, do livramento condicional, dos trabalhos livres em favor da comunidade, da cominação em reparar o dano, da própria admoestação formal como sucedâneo moderno, humano e digno da publicação de sentença condenatória, e de outras fórmulas alternativas ao encarceramento.

7. O objetivo da reinserção social

O primeiro artigo da Lei n.º 7.209, de 11 de julho de 1984, estabelece: ?A execução penal tem por objetivo efetivas as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para as harmônica integração social do condenado e do internado?.

O objetivo de reinserção social, concebido como a criação de possibilidade de participação nos sistemas sociais, não é incompatível com a garantia de liberdades e a proteção dos direitos do condenado que não foram sacrificados pela sentença. Segundo Calliess, este é o caminho para tentar lançar uma ponte entre os princípios antinômicos do Estado liberal e do Estado social. Tal dualidade, como reflexo de posições de confrontação, pode ser superada através de uma concepção aceitável que pressupõe diversas formas do diálogo Estado-sujeito(11).

No sistema proposto pela reforma penal brasileira, a partir das Leis n.ºs 6.416/77, 7.209/84 e 7.210/84, o processo de diálogo não constitui um fenômeno exclusivo de execução de pena privativa de liberdade quando, no interior dos presídios, a Administração possa tolerar as confidências trocadas pelos internos ou as tímidas reivindicações de direitos. Na verdade, com a garantia de que o Estado ?deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança? e à introdução do Conselho da Comunidade como um dos órgãos da execução penal (LEP, arts. 4.º e 61. VII), cria-se uma instância intermediária entre a prisão e a vida livre.

Trata-se de proporcionar a abertura das prisões à comunidade como providência que não se deve limitar às prisões e manicômios judiciários, cenários de repelidas tragédias e intoleráveis contradições entre as proclamações otimistas do humanismo penitenciário e a violência massiva e rotineira(12). Ao reverso, o processo de abertura das prisões deve abranger, além dos estabelecimentos destinados ao cumprimento da pena em meio cercado (penitenciárias, colônias industriais e agrícolas, hospitais de custódia e tratamento), aqueles outros nos quais se executam as penas privativas de liberdade em meio livre (casa de albergado, locais de assistência aos liberados condicionais etc.).

O Conselho da Comunidade, de exigência obrigatória em cada comarca e composto por representantes de categorias sociais estranhas ao quadro oficial (advogados, comerciantes, industriais, assistentes sociais e outros voluntários), traduz a presença da sociedade no interior dos estabelecimentos que, segundo a sua natureza, deverão contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática desportiva. Além disso, haverá instalação reservada a estágio de estudantes universitários (LEP arts. 82, 83 e parágrafo único).

A participação da comunidade no processo de execução penal, em forma militante (diagnosticando, propondo e ofertando soluções) e não como testemunha das violências e rebeliões, é uma das exigências da democracia fundada em princípios e regras que dignificam os seres humanos, cujo extrato revela a história pessoal em meio à essência e à circunstância.

A experiência bem-sucedida da prisão-albergue em São Paulo, e durante o tempo em que o professor Manuel Pedro Pimentel foi Secretário de Justiça(13), revela que um grande passo foi dado para reduzir os tormentos e a alienação das instituições totais, cujos estabelecimentos foram muito bem qualificados por Eberhard Schmidt como ?erreurs monumentales figées dans la pierre?(14).

8. A ?pena? de proscrição social

A execução das penas e medidas de segurança à revelia da participação eficaz da sociedade, além de institucionalizar mais gravemente a pena de proscrição, ou seja, uma reprise em circuito fechado da antiga pena da perda da paz, impede que o condenado possa alcançar a ressocialização como objetivo racional e dogmático de um fim social da pena e não como esperança mirífica da recuperação moral, tão recitada pelos samaritanos da redenção espiritual. A reinserção social gradativa, viabilizada através da forma progressiva da execução das penas privativas de liberdade (regimes fechado, semi-aberto e aberto), assim como se consagra no Código Penal com a reforma da Lei n.º 7.209/84 (arts. 32 e s.), e na Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210/84, arts. 110 e s.), poderá constituir uma base suficiente para se atenuarem os males da pena de rejeição, atípica nos ordenamentos positivos mas de dramática realidade nos costumes do povo quando ainda concebe a sanção criminal como espectro de maldição e confinamento.

9. Democratização das instâncias penais e participação comunitária

A democratização das instâncias penais de controle do processo de execução virá, por outro lado, conjurar métodos e meios ditatoriais que se consubstanciam na ideologia do tratamento segundo as perspectivas político-criminais das concepções positivas e pretendem provocar uma catarse no delinqüente, negando-lhe até o elementar direito de ser diferente(15).

A participação da comunidade também na execução das penas em meio livre, como beneficiária, por exemplo, de trabalhos gratuitos prestados pelo condenado, em substituição à pena da perda de liberdade, revela que o sistema proposto pela reforma penal brasileira se destina a colaborar nas tarefas de repensar a sociedade, em suas virtudes e em seus defeitos. A chamada ?repersonalización de la sociedad? significa a esperança de ver a sociedade do amanhã melhor configurada à medida da pessoa humana. Muitos infratores são, na verdade, infelizes herdeiros de uma sociedade desumana, coisificada e responsável pelas descompensações que deságuam no crime(16).

O repertório das medidas anticriminais e a sua modulação, tendo como pontos de partida a natureza do bem jurídico afetado e a intensidade da lesão, também mostram a perspectiva democratizante do sistema de sanções, posto que a objetividade jurídica corresponde a critérios sociais de valorização dos bens e interesses. E tal critério, para adquirir legitimidade, deve ser extraído da consulta aberta e livre à comunidade, que decidirá sobre a hierarquia e a importância dos objetos de tutela.

Além das contribuições que necessariamente devem surgir dos esforços comunitários, o sistema não pode se aferrar a um hermetismo asfixiante e inconciliável com a evolução dos costumes e das instituições. Como já acentuei em obra específica(17), a cegueira ou a indiferença para com as novas possibilidades de se alcançar uma justiça humana e eficiente deve ser condenada porque se funda na superstição acerca da infalibilidade de certos meios e métodos que, na verdade, constroem o edifício jurídico sobre areias movediças.

No quadro da Reforma de 1984, a preocupação em melhor ajustar o sistema às exigências jurídico-penais da proporcionalidade é demonstrada em várias oportunidades: a) na instituição de alternativas à prisão; b) na determinação de que a pena estabelecida pelo juiz deve ser ?necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime? (art. 59); c) na agravação especial do crime continuado (art. 71, parágrafo único); d) na diversificação da punição para hipótese do concurso de pessoas (art. 29, §§ 1.º e 2.º); e) na correção monetária do valor da multa (art. 49, § 2.º); f) na unificação de penas para se evitar, na prática, a imposição da prisão perpétua (art. 75, § 1.º); g) na vedação do sursis para o reincidente em crime doloso (art. 77, I); h) na concessão do sursis ao condenado anteriormente à pena de multa (art. 77, § 1.º); i) no cumprimento de mais da metade da pena (e não mais de dois terços) para a obtenção do livramento condicional em se tratando de condenado reincidente em crime doloso (art. 83, II); j) no cumprimento de mais de um terço da pena para obtenção do livramento condicional, quando se trate de reincidente em crime culposo ou não reincidente (art. 83, I)(18) etc.

10. Um paradigma do Supremo Tribunal Federal

O processo de diálogo que deve ser inerente a todas as penas criminais, foi exemplarmente reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas corpus n.º 82.959-7, de São Paulo. Por 6 (seis) votos a 5 (cinco) a Corte declarou a inconstitucionalidade do § 1.º do art. 2.º da Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990, que proibia a progressão de regime na execução da pena privativa de liberdade (CP, art. 33 e s.; Lei de Execução penal, art. 112 e s.).

?PENA – REGIME DE CUMPRIMENTO – PROGRESSÃO – RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA – CRIMES HEDIONDOS – REGIME DE CUMPRIMENTO – PROGRESSÃO – ÓBICE – ARTIGO 2.º, § 1.º, DA LEI N.º 8.072/90 – INCONSTITUCIONALIDADE – EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena – artigo 5.º, inciso XLVI, da Constituição Federal – a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2.º, § 1.º, da Lei n.º 8.072/90.?(19)

O voto do ministro Carlos Ayres Britto, deferindo o habeas corpus, constitui um notável precedente para fundamentar juridicamente a pena como processo de diálogo. Vale transcrever parte dele:

?2. (…) a progressão no regime de cumprimento de pena em estabelecimento físico do Estado finca raízes na vontade objetiva da Constituição de 1988. Não que a própria Constituição vocalize o fraseado ?regime de progressão em estabelecimento penitenciário ou prisional do Poder Público?. Porém no sentido inicial de que ela, Constituição Federal, ao proibir a pena de morte (?salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX?) e o aprisionamento em caráter perpétuo (alíneas a e b do inciso XLVII do art. 5.º), parece que somente o fez no pressuposto da regenerabilidade de toda pessoa que se encontre em regime de cumprimento de condenação penal, seja quando essa condenação diga respeito à privação total da liberdade de locomoção, seja quando referente à privação parcial dessa mesma liberdade. (…) Pois se o Magno Texto não partisse desse radical a priori lógico da possibilidade de regeneração da pessoa humana, nada impediria que ele inserisse nos seus mecanismos de inibição criminal o confinamento penitenciário perpétuo e até mesmo a pena capital.

3. Externando por outra forma a idéia, penso que foi em direta homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1.º) que a nossa Constituição Federal interditou a pena de morte e a prisão perpétua. Ao assim dispor, teria mesmo que se comprometer com a proclamação da garantia da individualização da pena, como efetivamente ocorreu (inciso XLVI do mesmo art. 5.º). E tal proclamação já significa afirmar que o cumprimento da pena privativa de liberdade de locomoção há de ostentar uma dimensão ensejadora da regeneração do encarcerado.

(…)

5. Se é assim vale dizer, se a Constituição mesma parece conferir à execução das penalidades em foco uma paralela função de reabilitação individual, na perspectiva de um saneado retorno do apenado à vida societária, esse mister reeducativo é de ser desempenhado pelo esforço conjunto da pessoa encarcerada e do Estado-carcereiro. Esforço conjunto que há de se dar segundo pautas adrede fixadas naquilo que é o próprio cerne do regime que a lei designa como de execuções penais (lei federal n.º 8.072/90). Um regime necessariamente concebido para fazer da efetiva constrição da liberdade topográfica de ir e vir um mecanismo tão eficiente no plano do castigo mesmo quanto no aspecto regenerador que a ela é consubstancial?(20).

Como se pode perceber dessa lúcida e humanitária manifestação, o regime de progressão da pena é um dos fiadores do processo de diálogo que deve ser imanente a todas as penas privativas de liberdade, diante da vedação constitucional das penas de morte e de prisão perpétua.

Notas:

(1)     Maia Neto, Cândido Furtado. Código de Direitos Humanos, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, p. 978.

(2)     Maia Neto, Cândido Furtado, ob. Cit., p. 978/979.

(3)     Direitos e deveres do condenado, São Paulo: Saraiva, 1980, p. 19.

(4)     Oliveira, Edmundo. Ob. e loc. cit.

(5)     Lei n.º 3.274/57, art. 1.º, I , XIII e XV; art. 9.º, § 1.º; art. 22.

(6)     O CP de 1969 (Dec-lei n.º 1.004, de 21/10/1969) modificado pela Lei n.º 6.016, de 31/12/1973, foi revogado pela Lei n.º 6.578, de 11/10/1978.

(7)     Sobre o tema, Castiglione, Teodolindo. Estabelecimentos penais abertos e outros trabalhos, São Paulo: Saraiva, 1959 e Silveira, Alípio. Prisão albergue Teoria e prática, São Paulo: Editora Universitária de Direito Ltda, 1972 (com a 3.ª ed. em 1973) e Prisão Albergue e regime semi-aberto, São Paulo, 1981: Brasilivros Editora e Distribuidora Ltda.

(8)     Cit. por Mir Puig, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal,Barcelona: Ed. Bosh, 1976, p. 86.

(9)     ?Postulats et limites du traitement des délinquentes en institution?, artigo de Pinatel, Jean, em Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé, 3, de 1977, p. 636.

(10)    Dotti, René Ariel. ?O trabalho penitenciário?, artigo para a coletânea Violência e criminalidade – Propostas de solução, Rio de Janeiro, 1980, p. 159.

(11)    Ref. por Miranda Rodrigues, Anabela. A posição jurídica do recluso na execução da pena privativa de liberdade, Coimbra, 1982, p. 88 e nota 226.

(12)    A propósito, Sérgio Pinheiro, Paulo, em suas intensas e constantes denúncias sobre as prisões, por exemplo, ?Crueldade e incompetência?; ?É natal em nosso Gulag?; ?O Manicômio, os especialistas e o poder?, em Escritos indignados, São Paulo, 1984, p. 103 et seq.

(13)    Entre os seus trabalhos sobre a desinstitucionalização do sistema, ver Prisões fechadas – Prisões abertas, São Paulo: Editora Cortez e Moraes, 1978, p. 37 e s.

(14)    Cit. por Aebersold, P. ?Le projet alternatif allemand d?une Loi sur l?execution des peines?, em Revue Internationale de Droit Pénal, n.º 3, 1975, p. 286.

(15)    O reconhecimento de tal direito como expressão jurídica é objeto de literatura atual, como se verifica através de N. Kittre, The right to be different – Deviance and enforced therapv, 1971.

(16)    beristain, Antonio. ?La cárcel como factor de configuración social?, em Doctrina Penal, Buenos Aires: Editora Depalma n.º 2 de 1978, p. 290.

(17)    Dotti, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 146.

(18)    Cf. a Lei n.º 8.072, de 25/7/1990, em casos de crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, o livramento condicional depende do cumprimento de 2/3 (dois terços) da pena, se o condenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza (inciso V do art. 83 do CP).

(19)    Votaram pela concessão do remédio heróico os ministros Marco Aurélio (relator), Eros Grau, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Sepúlveda Pertence e Gilmar Mendes. Foram vencidos os ministros Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Celso de Mello e Nelson Jobim.

(20)    Os destaques em negrito são do original.

Comunicação apresentada na reunião do Comitê Permanente da América Latina para a Revisão e Atualização das Regras Mínimas para Tratamento dos Presos, realizada na cidade do Rio de Janeiro (28-30/11/2007), sob a coordenação científica da Ministra Eliana Calmon, do Superior Tribunal de Justiça.

René Ariel Dotti é professor titular de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná. Co-redator dos projetos que se converteram na Lei n.º 7.209/84 (nova Parte Geral do CP) e na Lei n.º 7.210/84 (Lei de Execução Penal). Vice-presidente da Associação Internacional de Direito Penal (Paris) e presidente do Grupo Brasileiro. Ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

Detentor da Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados do Brasil. Advogado.

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