A noção de crise na ótica da ciência pósmoderna

Ouço falar em e de crise desde o tempo em que eu dividia o coração entre os brinquedos e deus (Goethe). Dessa forma, a construção da minha compreensão dos fenômenos sociais e das suas relações com a pessoa humana foi forjada sob o domínio no senso comum da idéia de crise. A partir desse imaginário e segundo o discurso emanado das instâncias de poder, há crise em todas as relações sociais, políticas, econômicas até atingir substancialmente as suas instituições. Destaco entre estas instituições, o Direito, para alcançar o foco desejado, que modela normativa e ideologicamente as condutas e estabelece os procedimentos para decisão dos conflitos porventura gerados nesta complexa teia social.

O poder, de um modo geral, é um símbolo, que se irradia verticalmente e com atroz capacidade de transformação. Nas relações sociais os poderes de Estado, isto é, gerados das suas instituições – especificamente o Direito -, buscam através de anestésicos normativos neutralizar e/ou controlar as ações individuais, com o fim de adequar o modo de ser das pessoas ao conteúdo da norma. Assim, a norma estabelece um sentido unívoco com a realidade, de modo a demonstrar um mundo harmônico e estável, condições sem as quais não possibilitam o ideal da segurança jurídica e, afinal, a aplicação da justiça distributiva.

Pois bem. Há uma crise, real? Ou o ideário da crise é apenas argumento retórico de autoridade – para (re)afirmar ou legitimar posições estratégicas de poderes que teimam em manter suas posições mesmo que desgastadas pelas transformações impostas pelo tempo histórico de suas instituições?

Todavia, percebe-se que o imaginário coletivo está açodado pelo consumo da crise; há uma imperiosa necessidade de se consumi-la, para alcançar e acalmar os desejos do mercado. O poder do mercado é determinante, a ponto de transformar objetos de amor em objetos de consumo, no dizer de Morin.

Os sintomas da crise se manifestam, verticalmente, em todos os segmentos das relações sociais, forjada a partir de uma concepção estável da realidade e de um modelo determinista de verificação das condutas ou fenômenos (Juarez Tavares). Ora, ao dogma da estabilidade da realidade e de um procedimento determinista para o exame da ação no mundo da vida é possível estabelecer um juízo de previsibilidade acerca dos resultados dessas práticas. Dessa forma, os momentos ou relações de instabilidades gerados pelos fenômenos sociais serão passíveis de controle e, através de um processo de reversibilidade buscam reconstruir a estabilidade, mesmo que simbolicamente. No direito penal este processo é instrumentalizado através da aplicação da pena, ou da punição de um modo geral.

Sob a égide desta noção de ciência na modernidade internalizada no imaginário coletivo, principalmente, pelos credos religiosos – é que se alimentou o ideário da crise, significando todo e qualquer processo pelo qual se instale mecanismos desencadeadores da instabilidade, mesmo que advindas das transformações do processo histórico, da (re)estruturação das instituições ou da atividade social da pessoa humana, independentemente de implementar avanços na formação do saber.

Isto sempre me causou muita perplexidade e angústia. No entanto, após reflexões compreendi que algumas concepções sobre a construção do conhecimento ocidental foram alicerçadas em objetos manifestados a partir de uma relação de conflitos instabilidades. Assim, por exemplo, foi constituída a ciência jurídica, a concepção de Marx, a de Freud, para citar apenas três. Entretanto, estas mesmas perspectivas científicas operam sob o domínio da noção teórica de ciência moderna, isto é, o dogma da estabilidade.

No entanto, com o advento da teoria do desequilíbrio ou não-equilibrio, desenvolvida na primeira metade do século XX, especialmente, por Ilya Prigogine, rompe-se com o paradigma da estabilidade, demarcando a fronteira com a ciência pósmoderna. Este novo paradigma supera a concepção clássica de ordem universal e imutável, assecuratórias de uma realidade também estável, porque seriam blindadas à “ação” do tempo. O tempo é uma ilusão, dizia Einstein. Ilusão maior é imaginar que o tempo é uma ilusão.

Doravante, a mutação e a desordem caracterizadoras da instabilidade produzem saber, visto que não mais se identifica ciência e certeza, mas possibilidades; as fórmulas simplistas e idealizadas das situações fáticas são substituídas pela complexidade do real.

Enfim, a mutabilidade de todos esses processos são frutos de uma estrutura social cada vez mais complexa. A complexificação social (Luhmann) e a crescente densidade populacional implicam a imersão do individuo no anonimato, o que faculta o surgimento de um modelo social em que a convivência com as diferenças é um símbolo do individualismo, porque sem um mínimo de solidariedade para uma vida realmente estável, e previsivelmente harmônica a uma paz social. Dizia Quintana, na multidão não se vê as pessoas.

Nesta perspectiva, do ponto de vista real a crise não existe, é apenas o produto do metabolismo social que condiciona as transformações processadas no campo da historicidade do homem e das suas instituições.

Raimundo Araújo Neto é doutor em Direito Criminal, professor universitário e advogado em Curitiba. advsete@brturbo.com.br

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