A história do lobo

Em 25 de outubro de 1975 – vinte e nove anos atrás – um jornalista chamado Vladimir Herzog, preso no DOI-Codi de São Paulo, foi encontrado morto. Seus carcereiros disseram que ele tirara a própria vida por enforcamento e, como prova, exibiram uma fotografia. Hoje – como então -, ninguém acredita nisso. Numa época em que o regime militar impunha censura à imprensa, Herzog virou símbolo de resistência democrática. Desde domingo passado, vinte anos depois de extinto o regime de exceção, o Brasil teve oportunidade de conhecer outras fotos do jornalista preso, nu e humilhado, ainda com vida.

A divulgação de fotos até aqui desconhecidas pelo público (encaminhadas por um ex-cabo do Exército à Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e até agora nunca identificadas como sendo do jornalista morto) bastou para que se formassem sobre a nossa frágil democracia pesadas nuvens de hipotéticas tormentas. O Centro de Comunicação Social do Exército repudiou com vigor a publicação dos documentos. No repudiar, disse coisas que o Planalto não gostou e o presidente Lula, incontinenti, pediu retratação. Cá e lá, feridas antigas foram reabertas. Isso não muda a natureza dos fatos. Mas um clima antigo e ruim, trazido por ventos já esquecidos, perpassou a espinha dorsal da nação.

Conta uma antiga fábula de Fedro (escritor romano que imitou o grego Esopo) que o lobo e o cordeiro, compelidos pela sede, foram a um mesmo regato beber água. O lobo, mais acima, incitado pela sua voracidade insaciável, acusou o cordeiro de lhe turvar a água. Só pretexto: como poderia este turvar a água se a corrente vinha exatamente da parte do lobo? Já sem razão, este tratou de arranjar outra acusação contra o lanígero: “Há seis meses, falaste mal de mim”, disse entre os dentes. Com menos de seis meses de idade, o cordeiro mal teve como balbuciar sua evidente inocência, enquanto o lobo comutava a acusação contra o pai do pequeno carneiro que, imediatamente, foi devorado sem piedade.

Águas passadas não movem moinho. Oficiais hoje na ativa certamente não eram sequer soldados à época dos fatos. O ambiente nos quartéis também não tem nada a ver com aquele respirado nos pesados anos de chumbo. Nem José Genoino, hoje presidente do PT, nem José Dirceu, atual ministro-chefe da Casa Civil – para não citar outros -, gostariam que a todo momento fosse lembrado por onde andavam, o que faziam ou deixavam de fazer. Onde pisam hoje o terreno é sólido, amalgamado pelos fatos e atos de milhões de brasileiros, tão sólido que ninguém contesta um passado de fugas e confrontações, nem para exorcizá-lo nem para glorificá-lo.

Não se pode perder de vista que o País resolveu pacificar-se pela anistia recíproca. E os contribuintes estão pagando por ela. As águas que vertem da democracia estão a montante dos fatos hoje revolvidos. Como na fábula, estes não podem turvar aquelas, a menos que, como fez o lobo antigo, tudo não passe de um mero pretexto. Isso, entretanto, não faz nenhum bem à nação, onde a maioria sabe, quando muito, por ouvir dizer das coisas ora revolvidas. Em ambiente assim, pois, será impossível que a verdadeira história – essa que já não pertence a ninguém, mas que interessa a todos – seja escrita ou reescrita para que produza lições e exemplos que toda história, boa ou ruim, triste ou não, deve produzir.

É importante que o passado seja tratado como passado por todos os protagonistas eventualmente ainda produzindo história. O caso Herzog, do ponto de vista histórico, como se vê, não está encerrado. É provável que na esteira das fotos recentemente publicadas outros fatos sejam lembrados ou trazidos à luz. Nunca se sabe. Isso é bom e não deve ser motivo para reacendimento de um confronto já enterrado pelo tempo e pela lei. Seria o mesmo que imaginar em todo soldado alemão de hoje um agente da SS nazista; em todo militar brasileiro atual, um milico torturador de ontem; em todo estudante ou cidadão contestador da atualidade, uma semente tardia do comunismo internacional, da guerrilha ou coisa que o valha. Os tempos, assim como os lobos e cordeiros, são outros.

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