A cinza voa, mas é o fogo que tem asa

Peço a todos especial licença para anunciar fato de extrema gravidade: as palavras vêm de entrar em greve. Todas as palavras e os dicionários não estão presentes, deixaram-me a sós com toda a emoção que transborda neste ato sem poder vertê-la adequadamente para sinais e signos lingüísticos.

Registro que as procurei pelos quatro cantos e não encontrei vocábulos, verbos, substantivos e adjetivos que fossem capazes de expressar os sentimentos que revestem o paraninfar dos formandos de 2005 da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Logo agora que muito deles necessitava para dar conta desse mister que afaga o coração e se traduz numa ímpar comunhão de uma noite luminosa sem igual e irrepetível.

As palavras se retiraram dos livros e dos dicionários para deixar tão-só sujeitos e predicados, sem objetos indiretos nem advérbios. E assim me deparei ao começar o labor desta oração, sem o Aurélio nosso de cada dia nem os recursos da cibernética. É grave essa greve das palavras, geral, ampla e irrestrita.

Diante desse inusitado fato, antes nunca sucedido, percebi que, pela vez primeira, após vinte e dois anos de exercício do magistério, me encontrava diante de uma situação inusual, uma formatura nunca dantes ocorrida e cuja circunstância, por certo, jamais irá se repetir.

Armou-se, então, um desafio feito odisséia, pois o pouco que sei é articular alguns verbos, poucos intransitivos, alguns sujeitos e uns míseros saberes da dissertação oral e escrita.

E assim aqui venho, despido da máscara que as vestes da linguagem fazem mediar entre a verdade e os fatos, para dizer-lhes, com sadio orgulho, que recebo hoje a maior dádiva que um professor pode esperar, mas o faço em nome de todos os professores homenageados na sua arte de verdadeiramente educar.

Sem o beneplácito de luxuosas palavras, venho apenas com o singelo toque do ?comboio de cordas? que bate no peito de cada um dos aqui presentes. Se faltam palavras, sobram borbulhantes as expressões de vida, de contentamento, e de superação das dificuldades. Todos nós sabemos quantos degraus tem a escada do tempo que chegou a este 17 de fevereiro de 2006.

Se for certo que as palavras estão presentemente em greve, protestando contra a mercantilização dos sentidos e dos significados, não elide nossa solidariedade alçar vôo nessa árdua missão de hoje (e aqui) fazer-se ao mar.

O primeiro quadrante do horizonte a ser singrado não é o desespero da falta das palavras, pois aqui captamos uma preambular lição: ?a cinza voa, mas é o fogo que tem asa?(1).

Impende, meus afilhados, apreender que é importante mas não suficiente ler os livros; é preciso ler a vida, a terra, o céu e o chão; é preciso ler a angústia dos homens e mulheres que tem o olhar de jejum; é imperioso saber que futuro que o bacharelado lhes apresenta, terçar as armas dos argumentos com veemência não pode fazer do direito campo de maquiavelismos.

É por isso que cumpre acreditar no sonho de uma sociedade justa que não venha monetizar a vida e nem faça tábula rasa da utopia. É por isso que nas muitas singraduras que lhes esperam na advocacia, no magistério, na magistratura, nas carreiras do Ministério Público, das Procuradorias, consultorias e afazeres similares de ofícios afins, cada um será responsável plenipotenciário de sua consciência, num caminhar sine ira, sem fomentar o belicismo do ódio nem semear a escuridão das sombras das almas pequenas.

E se o futuro, esse amanhã que lhes aguarda, parecer distante ou íngreme, não esqueçam de perseverar, pois sem esmorecer os rios cumprem sua missão, fazem o curso d?água, deságuam, e nunca enchem o mar.

Tenham presente que cada ação ou omissão será um passo relevante para, ao final de sua jornada, chegarem limpos de mãos. Nada obstante, participem ativamente da vida institucional da sociedade e do País, como escreveu Saramago, aquele que se senta à margem do rio vê, afinal, passar a si próprio na corrente.

Dessa coragem gelatinosa não necessitam aqueles que querem lutar por si e por todos, para que todos tenham uma vida digna de ser denominada vida verdadeira. Intrépido é o que vence seu principal adversário, o seu próprio medo, vence a aversão à ousadia, à criatividade, ao novo, ao crítico na criminologia inigualável de Juarez Cirino dos Santos, à lucidez política do processo civil em Manoel Caetano Ferreira Filho, com justiça, ambos aqui agraciados pelos bacharéis, patrono e nome de turma, respectivamente.

É fundamental fazer escolhas e por elas responder, hoje, amanhã, depois, também ?nel mezzo del camin di nostra vita? e em toda nossa existência, até o encontro inevitável com nossa finitude.

Eis a razão pela qual o direito não se capta ?à vol d?oiseau?, à moda de pássaro que voa baixo. Um projeto que se faz reto, justo e equânime para a vida inteira: eis o repto que de todos os graduados, já bacharéis, aguarda resposta.

Professores, pais, familiares, mestres e educadores que somos todos: orgulhemo-nos de nossa obra, está à frente de nós, é um sinal de nossa crença na humanidade e na esperança.

Para esses sóis que brotaram de dentro de nós, nada é impossível.

É por isso mesmo que celebramos nesta noite a comunhão da emoção que finca raízes num País a construir e que coloca a cabeça perto das nuvens para sonhar com o porvir.

Emocionados estamos por termos a possibilidade conquistada de aqui estar; e em aqui estando, celebramos os ausentes, aqueles que gostaríamos que estivessem ao nosso lado, apertando nossa mão e enxugando o suor de nossa testa.

Celebramos ainda nossos compromissos. E não são poucos, especialmente porque eles requerem comportamento, ações e condutas, dispensando palavras e meros discursos.

O agir do bacharel em Direito não é um apêndice órfão, submisso aos poderosos e arrogante com aqueles que silenciam quando deviam gritar. Antes, é um coletivo infinitivo de sentidos, aptos a serem vistos por quem neles se reconhecer.

Não tenham receio da álea e do risco. As almas grandes, afirmou Michel Serres, se expõem muito, e muito pouco as pusilânimes.

Eis aí o motivo pelo qual não devem disfarçar as coisas em que acreditam. Assumir posições, respeitar a divergência, cultivar o respeito e o diálogo na discordância que constrói: aí está outra lição que, tal como escreveu Leandro Konder, tivemos ?a esperança de contribuir para que os meus alunos abrissem veredas no campo da educação, para uma circulação mais generosa do pensamento, por meio de debates e leituras?(2).

E assim intentamos fazê-lo.

Não esperem do porvindouro um vale mágico e nem se hospedem na acomodação diária que apenas sorve a degustação da mediocridade.

Ademais, o Brasil do presente augura ver para além das vitrines da aparência, o apostolado da globalização do ?egoísmo maduro? sequer passou pelo vestibular do batismo.

Impende resistir à banalização da política, à coisificação de tudo reduzido a preço e à mercadoria. A dignidade não se ajusta no leviano indigno nem cabe na crítica rasteira e leviana.

Não nascemos apenas para isso que aí está. Podem (e devem) o conhecimento e a prática jurídica contribuir para que o legado do amanhã não seja tão-só o pretérito requentado.

Permito-me registrar que tivemos cinco anos de convivência e mútuo aprendizado.

Tratei-os como filhos, e todos sabem porquê; como filhos os tratei com o rigor da razão e a bondade do coração, sem cumplicidade obscura nem tiranias camufladas.

Não posso e nem devo aqui silenciar sobre o tempo constitucional experimentado no Brasil contemporâneo.

Reafirmo minha convicção na inafastável necessidade de preservar nossas instituições e torná-las aptas a realizar os desígnios da liberdade substancial do povo brasileiro.

Patologias conjunturais não nos devem levar à descrença estrutural na normalidade histórica. Somos todos vocacionados a essa missão de defender o Estado democrático de Direito, os poderes legítimos da ?res publica?, propugnando pelo exercício da crítica e da construção.

Tenha-se em mente que não há democracia sem contradição e paradoxos.

Impende, pois, abrir espaço, não só à crítica como também à ?crítica da crítica?, seguir no complexo processo contínuo de construção de nosso tempo, aberto, plural e compreensivo.

Eis aí a senda de nosso destino.

Senhoras e senhores, caríssimos afilhados: disse-lhes, ao início, que as palavras estavam em greve. Desse modo, este pronunciamento, na trilha da poética de Mário Benedetti, se fez olfatando o mundo!

É imprescindível sentir o mundo, a pulsação da vida em cada causa que põe em causa a vida inteira.

Escreveu o poeta Nicolás Guillén:

?Mire la calle.

?Cómo puede usted ser indiferente a ese gran río de huesos, a ese gran río de sueños, a ese gran río de sangre, a ese gran río??

Aí está o convite que encerra esta noite abrindo as portas da manhã que vai romper e empurrar o sol para iluminar as suas vidas.

Creiam-me: seus passos podem tocar as estrelas!

Notas

(1) Segundo Mia Couto, é um dito de Tizangara, Moçambique.

(2) Na Obra ?Artes da palavra: elementos para uma poética marxista?. São Paulo: Editora Boitempo, 2005, pg. 09.

Luiz Edson Fachin é professor. Discurso de paraninfo dos formandos em Direito de 2005 da UFPR. Proferido na sessão solene de colação de grau. Curitiba, Teatro Guaíra, 17 de fevereiro 2006.

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