Contestado: Rebeldes ou fanáticos?

Adeodato Manoel Ramos era um simples tropeiro que conduzia varas de porcos para a região de Taió, ou boiadas de gado gordo para o litoral pelos íngremes caminhos das serras. E rolando por ali, pelas canhadas, conheceu bastante gente. Ganhou algum dinheiro, negociou, negaceou, embolou, jogou, trapaceou, confundiu gado com gente e se tornou hábil no manejo das montarias e das armas: marcou, ferrou e matou.

Quando as principais labaredas começaram e estalar a crepitar nos campos secos do planalto, estava longe de ser chamado pelo povo jagunço de ?O Flagelo de Deus?, até a vitória campesina de Caragoatá ele ainda não havia decidido se reunir aos fanáticos. Não era um crente. Apenas assuntava e especulava naqueles ermos. Levava algum gado roubado para os redutos e de lá voltava com courama e cangalhas de erva-mate.

Aos poucos foi ficando amigo dos chefetes jagunços, como Elias de Moraes, Aleixo Gonçalves e principalmente Chico Alonso, que apreciava nele o jeito descontraído e o hábito que tinha de contar novidades do mundo em forma de versos: era um trovador de voz possante.

Sua primeira missão foi fratricida: matar um dissidente, partidário da ?virgem? Maria Rosa, que estaria tentando arreglo com autoridades…

Alto, espadaúdo, barba rala, moreno, olhos negros, analfabeto, mas bem falante intuitivo e ligeiro, Adeodato logo revelou excepcional ferocidade no policiamento interno de redutos, transformando-se numa espécie de fiscal de disciplina, de segurança dos chefões, de inspetor dos ?quadros santos?.

Sua violência chegou a tal ponto que assassinou o próprio Aleixo Gonçalves, seu amigo e protetor, chefe histórico do movimento rebelde. Segundo o testemunho de Alfredo Lemos (in ?Memórias?), Adeodato utilizou como pretexto o fato de Aleixo ter se afastado por uns dias do reduto de Santa Maria, doente que estava, para executá-lo. Mandou o velho capitão sair de forma, dar dois passos à frente e descarregou nele o revólver. Alguns amigos de Aleixo tentaram reagir, mas já acostumados à violência, se resignaram.

Certas versões fantasiosas sobre o movimento do Contestado chegam a apresentar Adeodato como o maior ?herói? dos redutos. Com seus gestos extremados e seu culto à própria personalidade foi um dos grandes responsáveis pelo desmoronamento do mundo jagunço. Apesar de sua ferocidade, não soube conduzir seus adeptos a nenhuma grande vitória, justamente na época em que estavam fortes. Ao contrário, cometeu o erro de fixar milhares de pessoas num só reduto, permitindo assim que um punhado de vaqueanos sob o comando do capitão gaúcho Tertuliano Potyguara penetrasse no coração do universo rebelde e quebrasse sua espinha. Coisa que milhares de soldados legalistas não tinham conseguido fazer em três anos…

Foi também Adeodato quem assassinou, num incidente dramático, o negro Joaquim Germano, que havia se distinguido da defesa do reduto de Santa Maria (acesso sul) contra as tropas de Raul d´ Estillac Leal.

Matou também a própria mulher, para juntar-se com a viúva de seu amigo Chico Alonso, confundindo, num gesto típico dos tiranos, a vontade pessoal com o exercício da chefia. E nos últimos dias do Contestado, já fugindo, avisou na localidade de Paiol dos Sales o velho Euzébio Ferreira dos Santos, outro chefe histórico da peleia e o executou.

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