Bolo, cachorro-quente, brigadeiro, salgadinho…

Então, vamos convidar os avós. Os tios da tua parte. A minha irmã. O Rubens deve estar na praia, ele disse que ia. Está sim. Da escola, não sei. Os amigos dele tão de férias. Tenho aqui o telefone do Quico. Vou ligar, acho difícil que esteja aqui. Aí, já são uns vinte. Contando os primos. Isso sem as namoradas. O bolo eu faço, a Tica me ajuda com os salgadinhos. Depois acerto com ela. A gente faz também cachorro-quente, uns quatro pacotes de vina, pãozinho daqueles pequenos; a vina eu corto, faço o molho que rende. Faço brigadeiro. Vai dar, nem vai sair tão caro assim, o Bernardo vai gostar. Ele me cobrou esses dias, Mãe, eu nunca fiz aniversário; festa, a gente podia fazer esse ano, eu disse que ia pensar, quero que seja uma surpresa, ver a carinha dele. A máquina de fotografia tá funcionando?

Chuva de verão em Curitiba. Dia quente, abafado. A grama do campinho vence as pisadas, os passes e os carrinhos no verão. Cresce alta. A chuva forte dura pouco e não para o jogo. A criançada continua jogando, as regras mudam a medida que gols são marcados, os times mudam, sai um que a mãe chama, entra outro que estava do lado de fora esperando. O jogo pára no décimo quinto gol, o jogo vai até quinze. A piazada senta ao lado do campinho. Molhados de chuva e suor. Bernardo conta: sábado é meu aniversário, lá em casa. Cês vão. Minha mãe vai fazer, daí a gente organiza um jogo lá, peço pro meu primo apitar. Cês vão de roupa de jogar bola. Uns dez piás ao todo. Dez que tinham ficado até o final, os amigos de Rua do Bernardo. Todos de férias. Todos convidados, sem maiores protocolos, para o aniversário do amigo. Bernardo sabia que ia ter aniversário. A mãe sempre dizia, "vamos pensar" quando ia fazer. As mães sempre dão um jeito de fazer as coisas que os filhos pedem, se são difíceis de fazer dizem que "vão pensar, mas sempre fazem. Bernardo sabia que as coisas andavam complicadas na sua casa. O Pai e a Mãe andavam brigando muito; as coisas não iam bem no serviço do Pai; a Mãe desde que nasceu a Tati estava sem emprego. Bernardo pediu o aniversário porque queria ver tudo bem, e ia ver, achava, já que festa é festa, e todo mundo fica alegre, e era isso que ele queria. Queria ver todo mundo feliz.

Ana, cê já falou pro Ber? Disse do aniversário? Não, te disse, disse para ele que ia pensar. Não, é que o Dário que trabalha lá na firma, o pai do Caíque, disse que o Ber convidou ele para sábado aqui em casa. Caíque fazia parte dos amigos da Rua. Dos meninos, dos piás que jogavam bola, jogavam betes, brincavam de polícia e ladrão. Vai ver o Bernardo entendeu que você disse que ia fazer, vai sair caro. No fim sairia mais barato se a gente saísse, nós quatro, comer uma pizza. Ana parou de fazer o que estava fazendo, deixou no fogo a panela em que esquentava em banho-maria a mamadeira da Tati. Gustavo continuou rápido, antes que Ana começasse a falar. Antes que começasse a discussão, o bate boca. Ultimamente, discutiam muito. Tempos difíceis. Frustração. Gustavo queria levar para casa o que achava que Ana, que Bernardo, que a pequena Tati mereciam. Achava que Ana andava triste, decepcionada. Se sentia menos marido, menos Pai. Ana nunca disse nada, nunca reclamou. Nunca reclamou com Gustavo. Não cobrava, pouco pedia. Era Gustavo mesmo que se cobrava, que se repreendia, que se desgostava, que achava que para aquela família, aquelas pessoas que tanto amava ele não prestava. Parou então quando viu o olhar da Ana, o olhar de certeza de Mãe que sabe o que está fazendo. Ana sorriu. Gustavo esperava uma resposta, mas Ana sorriu. Sorriu e falou, não se preocupe, ele deve ter falado mesmo, ele percebeu os preparativos. A criançada quer mais é brincar, deixe comigo, a Tica minha irmã já disse que trás os salgados. Deixe. Gustavo fingiu despreocupar. Ficou preocupado mesmo assim, com os gastos, com as contas, com o não ter, com o perder o que tem por não ter, com deixar de ser por não ter.

Marcelo pergunta: Cês vão no aniversário do Ber? Vamos, responderam os gêmeos. Quando é quié? Perguntou Felipe. Sábado. Ele falou depois do jogo, aquele dia. Tua mãe já tinha te chamado. É pra ir, ele disse, todo mundo. Quando se tem nove anos, todo mundo não é muita gente. Todo mundo são aquelas pessoas que a gente gosta, aquelas pessoas que fazem parte mesmo da vida da gente. A gente cresce, Todo Mundo aumenta. Entram na conta os conhecidos, os nomes, os colegas de trabalho, gente que a gente não gosta, gente que a gente não conhece porque só socialmente conhece. Todo Mundo para um guri é um conceito mais simples. Inexato, ainda, mais bem mais simples. Felipe continua: Será que é pros pais irem? No meu, foi todo mundo, os adultos, até as meninas foram. Felipe tinha isso, gostava de ver um monte de gente, de falar com todo mundo, de movimento. Marcelo não sabia a resposta, mas como melhor amigo do futuro aniversariante e auto-intitulado embaixador da festa, que a essa altura em evento se transformava, não quis perder a majestade. Respondeu rápido, é, é para ir. Meu pai também vai. Ele falou com o pai do Ber. São amigos os dois. Avise tuas irmãs também.

Ana, o Dário também vem? Você convidou os pais do Marcelo? Não, por que? Ele falou para mim lá no trabalho do aniversário do Bernardo. Disse, quando dei tchau na saída, então até amanhã no aniversário. Me pegou de surpresa, tava entrando no ônibus. Disse até amanhã. Agora não sei se ele vem trazer o Marcelo ou acha que é para ele vir também. Agora deixe, um a mais, um a menos, não faz diferença. Quantos pacotes de vina a gente comprou?

Vô José e Vô Marília chegaram cedo. Gostavam de chegar primeiro. Os pais de Gustavo. Ana só tinha mãe, a Vó Dolores. Vó Dolores morava com Tica, a madrinha do Bernardo, desde que Seo Astolfo tinha falecido. Com os dois filhos, Ana e Gustavo moravam na casa que antes fora dos pais dela. Economizavam aluguel. Moravam na Barrerinha, uma casa de madeira, antiga. Pintada de bege, as janelas num bege mais claro. Um quintal grande. Portão baixo na entrada, uma roseira na frente. Tica e Vó Dolores chegaram trazendo os salgadinhos. Muitos salgadinhos. Um exagero bem vindo. Eles esperavam que viesse mais gente, afinal. Um ou outro amigo do Ber. Gustavo estava ajudando Tica a tirar a terceira forma do carro quando viu chegando Felipe. Felipe, os pais e as irmãs. Que chegavam junto com Diogo, de chuteira e camisa do Atlético, com os pais, com o irmão mais velho. Estacionando, quase simultaneamente, os pais do Gilberto, os quatro irmãos do Gilberto. Gente chegando, gente sem parar. Gustavo pegou a forma e entrou correndo na cozinha. Ana estava dando os últimos retoques no bolo de chocolate, que agora parecia mínimo. Entrou rápido, fechou a porta. Apoiado na porta, deu a notícia: Ana, o bairro inteiro está vindo pro aniversário do Bernardo! Quantos pacotes de vina você disse mesmo que nós tínhamos comprado?

A coisas foram acontecendo e Ana e Gustavo foram sendo levados pelos acontecimentos. È tudo foi dando certo, por que errado não era para dar, por que era o aniversário do Bernardo e de vez em quando algumas coisas acontecem sem a gente programar, esperar ou entender. As cervejas foram aparecendo, do nada surgiu mais um bolo. Mais salgadinhos que a mãe do Carlos trouxe, na dúvida, afinal, se tinha sido convidada ou não. Os pais, quando saíram para comprar cerveja, trouxeram coca, gasosa. Mais doces chegaram com um convidado, com uma das mãe, que foi colocando o doce na mesa e dizendo, trouxe, experimente, depois de passo a receita. O jogo começou. Um quinze guris para cada lado. Na grelha do quintal, lingüiças que matvam a fome dos pais que torciam, davam palpite. As mães dentro, pelo menos oito bebês que de colo em colo iam passando. Na cozinha, uma legião de avós. Um exercito que descobria ingredientes e ia gerando mais e mais comida. As meninas brincavam protegidas da goroa no beiral da casa. A goroa virou chuva, chuva forte de verão. O jogo não parou, a torcida mais animada. O primeiro gol foi do Bernardo, comemoração geral, dos dois times, de todos os pais, que golaço, que gol bonito. A festa durou o dia inteiro. No final, depois que o último casal foi embora, depois que a porta, que estava aberta desde de manhã cedo foi fechada, depois que Bernardo, imundo foi mandado para o banho, Ana e Gustavo se abraçaram, felizes e olharam as milhares de marcas de tênis com lama na sala. Os vidros sujos de doce.

Os papéis de brigadeiro e os copos de plástico espalhados na casa. Olhando para Ana, Gustavo comentou, no fim deu tudo certo, deu na medida. Sobrou! Cê viu a quantidade de doce que tem na cozinha? Gustavo viu. Dois meios-bolos. Dezenas de brigadeiros. Salgadinhos que haviam surgido. Garrafas de gasosa sem gelar. Viu, também, pacotes e pacotes de vina, intactos na geladeira. Os pacotes que havia comprado e que supostamente haviam se transformado nas toneladas de cachorro-quente servidas. Ia dizer, comentar com Ana, fiz errado as contas, calculei para mais. Resolveu ficar quieto. Deixar de lado as contas. Resolveu aceitar e acreditar no milagre insuperável das pequenas coisas. Das coisas de casa, do dia-a-dia. Das coisas recheadas de bem-querer.

Aristides Athayde é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce aristides@aristidesathayde.com.br

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