As razões da independência

Na época da proclamação da independência, o Brasil passava da economia do ouro para a economia do café, como sempre, voltado para o mercado europeu. Como recolhemos da clara exposição de Frédéric Mauro sobre a expansão comercial na região atlântica, essas trocas haviam sido alimentadas pelos diamantes e pelo próprio metal amarelo e, mais tarde, por produtos agrícolas como cacau, açúcar, algodão, arroz e tabaco.

Portanto, a independência chegou no momento em que a perspectiva econômica brasileira apontava para uma certa euforia, em contraste com a revolução portuguesa (1820), nutrida por profunda incerteza na economia. Aliás, a própria decisão de d. João VI em transferir a corte para o Rio de Janeiro, em 1808, demonstrava a fragilidade do reino em comparação à solidez do subcontinente americano, como depois ficou provado. Com a separação, escreveu Mauro, Portugal privou-se de sua grande fonte de riquezas.

Desde que d. João VI voltara à metrópole, seus operadores políticos puseram-se a trabalhar no sentido de afastar d. Pedro do centro nervoso das decisões que interessavam ao Brasil, a fim de descentralizar a administração colonial e dificultar a articulação de um projeto nacional. Contudo, a tentativa foi inteiramente inábil e a independência acabou acontecendo em setembro de 1822, afinal, reconhecida em agosto de 1829.

Uma pesada crise constitucional irrompeu em Portugal com vistas à sucessão de d. João VI, que alimentava o sonho de ver seu filho mais velho como legítimo governante dos reinos de Portugal e Brasil, que finalmente voltariam a unir-se. O segundo filho, Miguel, havia sido expulso de Portugal e um conselho de regência presidido pela infanta Isabel Maria assumira os encargos do reino, enquanto o herdeiro estivesse impedido de ocupar o trono, que o velho rei queria amalgamar com o brasileiro.

Ao que parece, os formuladores da política de João VI subestimaram a irreversibilidade do projeto brasileiro, fato que levou o próprio Pedro I a abdicar da coroa portuguesa no dia 2 de maio de 1826, mesmo porque na metrópole se exacerbavam as tensões econômicas e ideológicas, com o iminente risco da erupção da violência e desespero, segundo Joel Serrão. Na verdade, esse foi um gesto político dos mais esdrúxulos tendo em vista que a abdicação se fazia em termos condicionais em favor da filha, Maria da Glória.

O historiador diz que cabia à jovem, ainda sem idade para ser coroada, “congraçar não já os dois Estados definitivamente separados, mas – suprema ilusão! – o liberalismo, como dom Pedro, à luz da experiência brasileira, o concebia e o tradicionalismo e os absolutismos portugueses, encabeçados e simbolizados por d. Miguel, a quem se reservava o papel de marido da futura rainha constitucionalista”.

Assim, em conversa franca, o que se pretendia era o retorno do status anterior a 7 de setembro de 1822, com a sutil diferença que o Brasil também constituía reino independente. Pedro abdicou da coroa portuguesa e essa condicionalidade efetivou-se em julho de 1826, quando Portugal jurou a Carta Constitucional outorgada em abril. A outra cláusula estabelecida pelo imperador brasileiro era a realização do casamento projetado, quando Maria da Glória chegasse à maioridade. Isso era quase um incesto, já que estariam se casando tio Miguel e a sobrinha, irmã e filha de Pedro I, mesmo “entendendo-se” que se tratava de um ato de realismo pragmático, não necessariamente estribado em princípios morais.

A família imperial simplesmente pisava terreno que lhe era próprio, já que a ordem era fazer o impossível para que o poder não lhe fugisse das mãos.

Pedro I, quem diria, nesse embrulho, passou a ter influência sobre atos políticos de grande alcance em Portugal. Malogrou, entretanto, na tentativa de deslocar Miguel de Viena d?Áustria para o Rio e, depois. em fazê-lo lugar-tenente em Lisboa. Na verdade, isso acabou precipitando a eclosão da guerra civil entre liberais e absolutistas (1832-34), na qual Alcântara (já ex-imperador brasileiro) desempenharia papel de importância crucial à frente do exército que lutava pelo trono de sua filha, a futura rainha constitucional d. Maria II.

O impacto da perda da antiga colônia foi tão forte que o reino entrou em colapso. Serrão diz que liberais foram assassinados, presos ou escorraçados para o estrangeiro, “enquanto o Portugal antigo, nos estertores da longa agonia final, agarrava-se a pesadelos delirantes”. No Brasil, a pressão sobre o imperador o levou a abdicar (7 de abril de 1831), e ao exílio em Londres e Paris. Com seu prestígio intocado obteve créditos para armar uma esquadra e partir para os Açores, onde a 3 de março de 1832 assumiu a regência. A 3 de julho já está no Porto, onde sofre combate das forças miguelistas, mas prossegue avançando. Depois de entrar no Algarve, chega a vez de Lisboa e a vitória final dá-se em maio de 1834. Antes de morrer, em setembro desse ano, d. Pedro assistiu a confirmação da Carta e sua filha foi aclamada rainha. Essa foi uma extraordinária vitória pessoal e, mesmo com as feridas ainda abertas, Portugal ingressava na “Época Contemporânea”.

No Brasil anterior, a efervescência das idéias políticas que culminariam na independência tinha à frente a notável figura de José Bonifácio. Homem de ciência, pensador político privilegiado e autêntico condoreiro, Andrada era o ministro mais forte e conselheiro íntimo do imperador. Para ele, o rompimento com Portugal era inevitável para que o Brasil cumprisse seu papel no Novo Mundo. Setembro se aproximava e d. Pedro foi a São Paulo. Aí, conheceu Domitila de Canto e Melo e com ela envolveu-se num apimentado romance, como era do feitio de ambos.

No início do mês desceu a Santos, onde desejava prestar homenagem à família do Andrada, retornando no dia 7. A subida foi penosa, relatou o coronel Manoel Marcondes de Oliveira Melo, não pelas dificuldades topográficas, mas porque os intestinos imperiais estavam em atroz batalha. Melo lembra que Pedro I parava a toda hora “para prover-se”. Em português menos castiço: Sua Alteza veio largando sob incontáveis moitas da Serra do Mar o real produto de seu baixo ventre. O dia da independência do Brasil não poderia ter tido égide mais eloqüente!

Já no planalto da antiga Piratininga, a comitiva depara-se com um portador, Paulo Emílio Bregaro, despachado da corte com a correspondência. O Andrada lhe dissera: “Se não arrebantar uma dúzia de cavalos no caminho, nunca mais será correio”. A missão foi cumprida, e Pedro abriu as cartas de dona Leopoldina, do fiel ministro, do cônsul inglês Chamberlain, e as que haviam cruzado tanto mar. Andrada escreveu que de Portugal só se devia esperar escravidão e horrores, e que “medidas de água morna” nada aproveitariam no momento.

Pedro está-se abotoando (mais uma vez a terrível disenteria o fizera quebrar o corpo). Padre Belchior, um dos acompanhantes, conta que o imperador deu alguns passos silenciosamente na direção dos animais. De repente, estacou e disse: “Padre Belchior, eles o querem, terão sua conta. As cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de “rapazinho? e de “brasileiro?. Pois verão agora quanto vale o “rapazinho”. De hoje em diante estão quebradas as nossas relações; nada mais quero do governo português, e proclamo o Brasil para sempre separado de Portugal”. Do chapéu arrancou o laço azul e branco, símbolo lusíada, concitando os soldados a imitar-lhe o gesto. Desembainhou a espada e jurou pelo seu sangue defender a liberdade do Brasil. O que seguiu foi assim descrito por Pedro Pereira da Silva Costa, no volume 9 da coleção “A vida dos grandes brasileiros” (Editora Três, SP, 2000): “Todos o acompanharam no juramento. Montado na sua bela besta baia gateada, de pé nos estribos, voltou-se para trás, chefiando o grupo, e, alto, para que todos o ouvissem: Brasileiros, a nossa divisa de hoje em diante será – Independência ou Morte”.

A amizade entre Andrada e Pedro foi, aos poucos, minada pelos intrigantes que invejavam o descortino do estadista de Santos. Em 1823, demitiu-se do ministério em caráter irrevogável, ficando fora do País até 1829. Voltou à cena em 1831, com a abdicação, nomeado tutor do filho do ex-imperador. No conturbado período da regência, os ânimos políticos antagônicos entram em choque por todo o território. Um lado teme a volta do imperador, o outro quer antecipar a maioridade do príncipe, ao passo que outro acusa os demais de inimigos da liberdade, déspotas, radicais, o diabo. Andrada está no meio desse bate-boca, indicado para a Câmara. Uma de suas notas é o retrato de seu sentimento interior. “Nada me enfastia mais do que ver rostos hipócritas e conversações monotônicas ou sempre eruditas ou com um ar de importância.”

A regência quis tirar de Andrada a condição de tutor e mandou tropas à Quinta da Boa Vista. Preso, o antigo ministro foi confinado na ilha de Paquetá. Processado, a Justiça o absolveu por unanimidade. Qual teria sido seu crime, até hoje não se sabe. A História, porém, com inteira justiça o consagrou como Patriarca da Independência. Foi exaltado por abolicionistas, positivistas e democratas. Gondim da Fonseca, no bicentenário de seu nascimento (1963) qualificou-o como “nacionalista, republicano, homem de esquerda.”

Ivan Schmidt

é jornalista e escritor.

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