As mães do Ahu

Chegou bem cedo, bem de madrugada, como de costume. A garoa fria cobre de prata o casaco de lã grossa, muito usado, e os cabelos nevados pelo tempo. A garoa e o frio obrigam Dona Madalena a ficar debaixo da proteção do ponto de ônibus. Ventinho chato, que deixa a garoa entrar.

Madalena foi a primeira a chegar. Logo chegam outras. A segunda, a terceira vai saber que Mada chegou primeiro. Depois da quarta, ninguém mais sabe. No fim, a impressão e de que todas chegaram juntas. E chegam carregadas pela ansiedade de uma semana.

Muitas já se conhecem. Dona Mada vem há meses. Trás na embalagem usada de sorvete o bolo de fubá e Nescau preparado durante a noite. Encosta a embalagem no corpo, bem fechada, que é para o bolo ficar quentinho.

Todo domingo, um rosto novo surge. Nos primeiros finais de semana, as novatas aparecem meio sem graça, ressabiadas. Bem recebidas, começam a se entrosar. Dona Mada, que chegou primeiro, que traz o bolinho quente, trata de puxar assunto. Descobre que o filho de Marlene chegou do Centro de Triagem. Começou a andar com gente ruim, caiu no crack. Roubar não roubou. Só estava junto…

As mais antigas no ponto, as conhecidas de Mada, já nem contam mais a estória dos seus filhos, que também só estavam junto. O azar é igual, a miséria é igual. No coração das mães dos detentos, a certeza da inocência é igual. Todos os filhos, de todas as mães, são inocentes. Tiveram o azar de andar com gente ruim.

Como a espera é longa, a conversa anima. Falam do serviço, da falta de serviço, de outros filhos e de outras filhas. O filho da Marta saiu, foi para casa. Joana divide o café da térmica com algumas conhecidas. Está feliz, último final de semana. Mada também está feliz, conta, é aniversário dele. Fala do bolinho que trouxe. Não ousa abrir a embalagem, guarda junto do corpo para não esfriar. Se mostrar, vai ter que dar para as outras. Se não oferecer, é falta de educação. As outras mães compreendem e não tocam no assunto.

A garoa continua e vai chegando a hora da visita. A proteção de fibra já não cobre tanta gente. A garoa vira chuva, as mães vão se espremendo. Surgem as cores das primeiras sombrinhas. Chegou a hora de formar fila para a revista. Deixam o ponto, vão para a marquise da recepção. Mada, a primeira da fila, de carona na sombrinha da Marlene, gruda o rosto na porta, olha para dentro, ansiosa. Logo o agente penitenciário abre a porta, dá bom dia. Entram tantas mãezinhas quanto cabem, o ar satura, cheiro de lã molhada, de shampoo, perfume e café.

Mada mostra o pote branco de sorvete, sorri banguela, conta que é aniversário do filho. A agente responsável pela revista responde o sorriso. Olha o bolo. Devolve o pote. Os dedos escuros de Mada já estão brancos de tanto apertar a tampa. A agente, que também é mãe, pergunta se ele sai logo. A esperança ilumina outro sorriso banguela. A agente mãe retribui o sorriso e deixa Mada passar.

Sessenta anos, frágil, percorre firme o corredor e encontra o filho. Abraça o homenzarrão cabisbaixo, beija com força o rosto do seu menino. Segura com uma das mãos a nuca do filho, chora, pergunta se está tudo bem, continua chorando, dá os parabéns, abençoa, diz que está rezando, beija o filho com força. Entrega o bolinho e sorri percebendo que o presente se manteve aquecido.

– Tá tudo bem mãe, falei com o Doutor, semana que vem saio…

A resposta é a mesma; a resposta pouco importa. Todas as mães, ao lado de todos os seus filhos, recebem a mesma resposta. O que importa é que as mães estão ali. E que seus filhos estão ali. E que enquanto elas estiverem junto nada de ruim acontece…

Logo ele sai. Daí, então, vai ser diferente, vai trabalhar, casar, entrar pra igreja. Tira da sacolinha de plástico uma foto do netinho usando uma inexplicável roupa de jogador de futebol:

– Que lindo! Já está andando?

– Fica de pé. Daqui a pouco, tá andando…

Um outro beijo de despedida. Um abraço, lágrimas que molham o rosto bem enrrugado. Enxuga as lágrimas com a manga do casaco de lã rosa. Ele pede que avise todos que irá sair. A visita termina. Mada vai embora. Fica o bolo e a foto do filhinho. O filho chora e esconde o rosto de medo, tristeza, vergonha e saudade.

Mada sai, dá tchau para a agente mãe. Fora, a chuva parou, o sol esquenta o domingo. A cidade começa a acordar. Mada tira o casaco molhado, coloca na sacola de plástico e volta para o ponto de ônibus, apressando o passo, pois o neto já deve ter acordado, o marido vai estar querendo o café. Os dedos tortinhos doem, de tão forte, de tanto tempo que segurou o bolo. A cabeça lateja de uma gripe ganha já há muitas madrugadas. Pouco importa: Madalena vai embora transbordando amor esperança. Por que ninguém segura Santa Madalena.

Aristides Athayde

é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce

aristides@aristidesathayde.com.br

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