A literatura se rende à Copa do Mundo

Daqui exatamente um mês, boa parte da população do planeta vai estar com a atenção concentrada em um terreno retangular de grama, na cidade de Munique. Ali, às 13 horas (pelos ponteiros de Brasília), Alemanha e Costa Rica vão dar início à 18ª Copa do Mundo de futebol, o maior evento do esporte. A esperança de que a seleção brasileira conquiste seu sexto título é tamanha que empolgou até mesmo setores normalmente pouco interessados em futebol, como as editoras de livros. Próximo do início do Mundial, as livrarias foram inundadas por uma inédita febre de bola, com lançamentos que oferecem tanto análises e biografias de jogadores como Ronaldo e eventos clássicos, como crônicas e romances inspirados no esporte mais popular do mundo. O oportunismo é evidente, assim como a qualidade de alguns títulos.

As primeiras obras a chegar trazem seleção de textos. Em "11 Histórias de Futebol" (Nova Alexandria), escritores foram convocados a exaltar o mundo da bola. O editor-executivo do jornal "O Estado de S.Paulo" Daniel Piza, por exemplo, narra o terrível duelo entre um zagueiro e um centroavante. Já Antonio Carlos Olivieri criou um personagem que odeia futebol e ainda torce pela Argentina

Em outra seleção, "22 Contistas em Campo" (Ediouro), o especialista Flávio Moreira da Costa reuniu até um texto raro, do inglês Patrick Kennedy, autor, segundo Costa, do primeiro conto do mundo em que o jogo de futebol aparece, misturado a assombrações. É curioso observar a presença de nomes contemporâneos como Ignácio de Loyola Brandão e Moacyr Scliar (representado por um texto inédito), cuja admiração pelo futebol contrastou com o desprezo de outros escritores ilustres, valorosos atacantes da disseminação do bate-bola como Graciliano Ramos (que acreditava ser a capoeira o esporte nacional) e Lima Barreto (cujo desprezo era tamanho a ponto de fundar a Liga Brasileira contra o Futebol).

Embora tenha selecionado textos de mais de 20 autores, Moreira da Costa reconhece, na introdução do livro, a dificuldade de encontrar o futebol como tema na literatura brasileira. Ele arrisca um palpite: o futebol seria uma expressão em si mesmo, no Brasil e em outros países. "E se o futebol é uma expressão em si mesmo, toda outra expressão estaria condenada a se diluir", observa. "Como se fosse um discurso sobre o discurso, redundância e, como toda redundância, imagem enfraquecida."

No time contrário, o colunista do jornal "O Estado de S Paulo" e antropólogo Roberto DaMatta buscou subsídios para explicar como um jogo tão alheio à índole nacional pode acabar virando a cabeça dos brasileiros. Peladeiro virtual, ele selecionou crônicas e ensaios para formar "A Bola Corre mais Que os Homens", que a editora Rocco lança na segunda-feira (15). Um dos primeiros estudiosos a acreditar que o futebol era um fenômeno cultural a ser estudado, DaMatta acompanhou as Copas de 1994 e 1998 como cronista, o que dá o tom de atemporalidade ao seu texto.

Da sociologia a partir da arquibancada para a psicologia dentro de campo – aproveitando o momento, a Nova Fronteira reedita um importante texto há muito esgotado. "Vida Que Segue" – João Saldanha e as Copas de 66 e 70, crônicas organizadas por Raul Milliet. Jornalista, técnico da seleção antes da conquista do tri no México, Saldanha era uma figura singular. Com uma visão humanista da vida, da política e do futebol, ele buscava a valorização da cultura brasileira.

Em seu artigo "Vitória da Arte", após a conquista no México, resumiu sua filosofia de vida e de bola: "Antes de mais nada, quero dizer que a vitória extraordinária do Brasil, foi a vitória do futebol. Do futebol que o Brasil joga, sem copiar de ninguém, fazendo da arte de seus jogadores a sua força maior e impondo ao mundo futebolístico o seu padrão, que não precisa seguir esquemas dos outros, pois tem sua personalidade, a sua filosofia, e jamais deverá sair dela."

Relatos de qualidade – Os grandes dramas brasileiros inspiraram não apenas lágrimas, mas relatos de qualidade. Em 2000, Roberto Muylaert lançou "Barbosa – Um Gol faz Cinqüenta Anos" (Ícaro), emocionante saga do goleiro Barbosa, da seleção brasileira derrotada pelo Uruguai no Maracanã por 2 X1 , no dia 16 de julho de 1950. Já o drama de Ronaldo antes da final vencida pela França, em 1998, continua um mistério. É o que conclui o inglês James Mosley, em "Ronaldo – A Jornada de um Gênio", lançado agora pela Verus.

O atacante teria sofrido uma convulsão horas antes da partida, o que o deixou atordoado, assim como o restante da equipe. Desnorteado, o Brasil perdeu por 3 a 0. "Até agora ninguém explicou de maneira satisfatória o que aconteceu realmente, e minhas investigações revelaram um muro de silêncio pré-ensaiado e com respostas preparadas, ao estilo de um serviço secreto", escreve Mosley, adiando uma solução, quem sabe, para o Mundial da África do Sul, em 2010.

Também presente à fatídica final da França, como cronista do jornal "O Estado de S.Paulo", Mario Prata preferiu relembrar aquela Copa de forma bem-humorada. Em "Paris, 98", próximo lançamento da Objetiva, ele criou a história de Gregório um brasileiro de classe média baixa que ganha numa promoção a chance de assistir aos jogos ao vivo e jura para a mulher que vai só para vender os ingressos – afinal, estão devendo mais de R$ 10 mil para o agiota. Mas, no momento exato, ele decide assistir a tudo e ainda arruma uma amante na excursão.

Provocar risadas é a intenção ainda do casseta Hélio de la Peña que, também pela Objetiva, lança agora "Vai na Bola, Glânderson". Com o humor característico de sua trupe, ele conta a história do empresário Paulo Ventania, que tenta enriquecer com a ajuda de Glânderson, aspirante a craque que perdeu dois dedos do pé direito em um acidente, o que dá ao seu chute um efeito único.

O humor também dá o tom de "Deixa Que Eu Chuto 2 – A Missão" (Relume Dumará), de Renato Maurício Prado, e "Causos da Bola" (Editar), de Victor Kingma, reuniões de histórias nem sempre verdadeiras mas folclóricas, que contribuem para o encanto do futebol.

Outro apaixonado pela bola (e por listas), o inglês Nick Hornby convidou outros escritores com a incumbência de cada um escrever sobre cada uma das 32 seleções classificadas para a Alemanha – a brasileira ficou sob a responsabilidade de John Lanchester. O resultado é o curioso "O Guia Cult para a Copa do Mundo", que a editora Rocca lança aos 44 minutos do segundo tempo, ou seja, no fim de maio, às vésperas da abertura do Mundial. Entre os textos, destaque para o escrito por David Eggers, sobre os Estados Unidos. Entre outras pérolas, ele afirma: "A beleza do futebol para os jovens é que exige pouca habilidade para criar um simulacro do jogo. Nenhum outro esporte suporta tal incompetência." Sem comentários.

Com os pés no chão, Lédio Carmona e Gustavo Poli, que já revelaram sua destreza no jornalismo esportivo, organizaram o "Almanaque do Futebol" (Casa da Palavra/COB), livro com todos os detalhes sobre o esporte e que o torcedor deverá carregar debaixo de um dos braços quando a Copa começar.

Debaixo do outro braço, outra opção é o relançamento de "Um Brasileiro em Berlim" (Nova Fronteira), que João Ubaldo Ribeiro escreveu quando morou na Alemanha, nos anos 1990. A nova edição traz um texto inédito, "Alemanha para Principiantes", em que o colunista do jornal "O Estado de S.Paulo" apresenta saborosas dicas para quem vai acompanhar a Copa de perto.

Também interessado em apresentar um detalhado levantamento da história do esporte no País, João Máximo escreveu "Brasil: Um Século de Futebol, Arte e Magia" (Aprazível), edição bem cuidada, com fotografias e outras imagens complementando o texto.

Outra interessante lista, dedicada à moçada, é o que oferece "O Mundo É uma Bola" (Ática), seleção de textos escritos por Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Millôr Fernandes e outros craques, promovendo uma valorosa introdução futebolística às letras.

Aos já iniciados, André Sant?Anna escreveu "O Paraíso É Bem Bacana" (Companhia das Letras), que trata de Muhammad Mané, na verdade, Manoel dos Santos (o mesmo nome de Garrincha), promessa do futebol alemão e internacional, recém-converso e recém-imolado à fé de Alá e que se transforma em terrorista. Distinto dos demais lançamentos sobre futebol e com uma narrativa sombria, Sant?Anna aproveita o tradicional discurso de esforço coletivo do futebol para demonstrar como se podem anular individualidades.

Com o livro, ele consegue comprovar que o futebol é mais que um esporte, ou mesmo um modo de vida, por tratar de questões complexas que ultrapassam a arte do jogo. Os clubes de futebol espelham classes sociais e ideologias políticas, e freqüentemente inspiram uma devoção mais intensa que as religiões. Partindo desse raciocínio, o britânico Franklin Foer viajou o mundo (passou inclusive pelo Brasil) para analisar o intercâmbio entre o futebol e a nova economia global. O resultado é "Como o Futebol Explica o Mundo" (Jorge Zahar Editor), em que mostra como o esporte, longe de promover o triunfo do capitalismo apregoado pela direita, fortaleceu a corrupção.

Por ser, dos esportes, o mais aberto a diversas interpretações, o futebol inspira ainda outras artes, especialmente o cinema. É o que trata Luiz Zanin Oricchio, crítico da área do jornal "O Estado de S.Paulo", que lança, até o fim do mês, "Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil" (Imprensa Oficial), outro exemplar da Coleção Aplauso.

Apesar do ceticismo (o documentarista João Moreira Salles disse que seria o mesmo que fazer uma pesquisa sobre as escolas de samba de Tóquio, tão pobre seria o material disponível), Oricchio mostra como as trajetórias do cinema e a do futebol seguem juntas, mas não paralelas.

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