Especial Curitiba 323 anos

O sítio virou cidade

Escrito por Luisa Nucada

Aos 61 anos, a dona de casa cresceu e morou a maior parte da vida na rua que leva o nome de seu tio-avô. Conta a história que o descendente de judeus portugueses Laurindo Ferreira de Andrade, seu bisavô, comprou 180 alqueires de terra demarcadas pelas águas dos arroios Cercado, Boa Vista e Padilha, afluentes do Ribeirão das Padilhas. Batizada de Fazenda Cercado, a propriedade era pouso de tropeiros de passagem pela região. Pelos idos de 1940, o patriarca dividiu a propriedade entre os filhos Sezinando Ferreira da Cruz, Isaac Ferreira da Cruz, Jovita Ferreira da Cruz e Júlia Maria Ferreira da Rocha, avó paterna de Maria. E assim teve origem o bairro.

Loteamento

Hoje ruidoso, entorno da estação-tubo Xapinhal já foi bastante sossegado. Foto: Lineu Filho
Hoje ruidoso, entorno da estação-tubo Xapinhal já foi bastante sossegado. Foto: Lineu Filho
“Do Arroio Cercado pra lá, onde hoje é o Xapinhal, era tudo da minha avó”, diz a herdeira, apontando na direção leste. A principal rua do bairro surgiu por iniciativa de alemães donos de leiterias do Boqueirão, lembra. “Eles quiseram abrir um acesso e meu pai, João Ferreira da Rocha Sobrinho, cedeu uma parte do terreno.” A criação de gado leiteiro era uma das atividades desenvolvidas no lugar, além do cultivo de hortaliças e lavoura branca – arroz, feijão, milho. “Aqui não tinha nada. Não tinha moradores, comércio, movimento. Pra ir pra escola, a gente andava até o mercado Pluma, na poeira ou no barro”, recorda Maria, citando o antigo armazém da Rua Francisco Derosso, única opção para as compras de gêneros alimentícios naquela época.

A região começou a mudar de perfil há cerca de 35 anos, quando os loteamentos tiveram início. “Dividiram tudo em lotes e foram vendendo. Primeiro veio gente pra morar, depois vieram os comércios, o asfalto”, conta. Ao passo que chegava o “progresso”, saíam as araucárias. “Tinha muito, muito pinheiro, mas tiravam conforme precisavam abrir caminho, construir. Naquela época não tinha essa preocupação com o meio-ambiente.” Da paisagem rural, tomada pela espécie típica do Paraná, sobraram poucas árvores, concentradas em um bosque próximo à avenida.

Entre tantos comercios, carros e pessoas, a beleza de uma arvore se destaca.
Hoje restam poucas árvores na Izaac. Foto: Átila Alberti
Ele foi o primeiro a instalar um posto de combustível na BR-116. Foto: Átila Alberti
Ele foi o primeiro a instalar um posto na BR-116. Foto: Átila Alberti
“Tinha muito, muito pinheiro, mas tiravam conforme precisavam abrir caminho, construir. Naquela época não tinha essa preocupação com o meio ambiente”

Maria do Rocio da Rocha, sobrinha-neta de Isaac Ferreira da Cruz.

Atualmente, Maria é a única descendente do fundador do bairro que permanece morando ali, com filhas, genros e netas. De seu tio-avô Isaac, ela lembra pouco. “Sei que ele viveu muitos anos no Sítio Cercado. Tinha um posto de gasolina e era conhecido de todo mundo. Quando morreu, creio que do coração, em março de 1967, eu ainda era criança.” Uma foto do casamento de Isaac foi o que sobrou para ajudar a memória.

Nos registros do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), consta que Isaac Ferreira da Cruz nasceu no dia 6 de abril de 1897, e foi o primeiro a instalar um posto de combustível na BR-116. A principal avenida do bairro recebeu seu nome em 19 de agosto de 1968.

Comerciante antigo

Vários tipos de comércio estão instalados na avenida. Foto: Átila Alberti
Vários tipos de comércio estão instalados na avenida. Foto: Átila Alberti
Tarcísio Borges de Paiva, 58, é o proprietário do comércio de confecções e calçados mais antigo da Izaac Ferreira da Cruz, as Lojas Tiago. “Quando abri aqui, em janeiro de 1986, tinha mais cinco lojas do segmento. Os donos já morreram todos, só fiquei eu”, diz. O cenário da época, segundo ele, era formado por um pinheiral e por carvoarias e depósitos de carvão. “Era uma rua morta. Na avenida não tinha lombada nem sinaleiro, eu levava oito minutos pra ir da garagem da Pluma (na BR-116) até o terminal do Boqueirão. Hoje levo mais de uma hora”, brinca.

Tia do Milho

Foto: Lineu Filho
De segunda a sábado, Lina acompanha o movimento frenético da avenida. Foto: Lineu Filho
Quem mora perto da Rua Izaac Ferreira da Cruz, ou passa por ali frequentemente, com certeza já a viu. Há nove anos, ela bate ponto na esquina com a Rua Contenda com seu carrinho de milho cozido, pamonha e cocada. De sorriso fácil, Lina Lopes vende seus quitutes, mas também joga conversa fora e faz amizades. De segunda-feira a sábado, ela acompanha o movimento frenético da principal avenida do Sítio Cercado. “A gente olha hoje e não dá pra acreditar. Quando vim pra cá, 46 anos atrás, isso aqui era um campão, só tinha mato”, diz Lina, que aniversaria no mesmo dia que a cidade de Curitiba, e completa hoje 66 anos.

 ‘A gente olha hoje e não dá pra acreditar. Quando vim pra cá, há 46 anos atrás, isso aqui era um campão, só tinha mato‘

Lina Lopes, comerciante e moradora do Sítio Cercado há 46 anos.

Pelo que se lembra, só existiam oito casas em 1969, quando ela veio de Salto do Itararé, no Norte do Paraná. “Tinha uma invernada de gado e um açude pra eles beberem água, tinha granja. Era tudo sítio, passava até veado.” Seis anos depois de sua chegada, veio a grande neve de 1975. “Essa rua ficou brancona, a gente pisava e era fofo. Aquela neve demorou pra acabar, durou uns quatro dias”, recorda.

O acesso ao centro era difícil. Até o ponto de ônibus, Lina e o esposo tinham de caminhar 40 minutos. “Chegou uma hora que meu marido cansou dessa vida e alugou uma Kombi junto com outros vizinhos, pra levar a gente pra trabalhar na cidade.”

Movimento intenso

Foto: Átila Alberti
Há oito anos na varrição, José é figura carimbada da via: “melhorou umas coisinhas”. Foto: Átila Alberti
Em termos de comércio e serviços, a Rua Izaac Ferreira da Cruz – que se estende por mais de cinco quilômetros, da BR-116 até a Rua Francisco Derosso – não deixa nada a desejar. Tem de tudo: de pet shop a loja de máquinas de costura; de salão de beleza a verdurão; de relojoaria a restaurante japonês. Além, é claro, dos muitos vendedores ambulantes que oferecem toda sorte de acessórios de vestuário e lanches.

Há oito anos, quando o varredor de rua José dos Santos Pereira Filho, 49, começou a cuidar da limpeza da via, a Izaac já era um grande centro comercial. “Mas de lá pra cá desenvolveu mais, melhorou umas coisinhas”, comenta. Conhecido por Zé, ele é uma figurinha carimbada do lugar, assim como Lina, do carrinho do milho.

O fluxo de gente é tão intenso que são necessários dois turnos de varrição por dia. “Faço das 7h30 às 15h45, de segunda a sábado. Sempre tem muito trabalho, mas em véspera de Dia das Mães, Natal, Páscoa, é ainda mais movimentado.”

Sobre o autor

Luisa Nucada

(41) 9683-9504