Curitiba

Sapataria tradicional de Curitiba tem segredo de 34 anos de sucesso revelado: simpatia, humildade e talento

Sapataria na rua Saldanha Marinho, em Curitiba
Escrito por Maria Luiza Piccoli

Às 8h15 em ponto as portas de ferro se abrem. Sobre o balcão, dois ou três jornais do dia e pelo som, sintonizado na “rádio easy” de Curitiba, ouve-se as últimas notícias intercaladas à música “pop light”. A ideia é amenizar o corre-corre do dia a dia, nem que seja ouvindo música calma. Mais adentro, prateleiras cheias. Lotadas. Em cada uma delas, sapatos de todos os tipos: femininos, masculinos, sociais, tênis, tamancos, Louboutins e “lobotinhas”. Saltos também. Pra todos os gostos e estilos: agulhas, anabelas, meia-patas, plataformas. Carros-chefe do conserto de sapatos, os “taquinhos” ainda são a maior demanda na Sapataria Rápida Florença que, há 34 anos funciona no mesmo lugar, no Centro de Curitiba, onde despretensiosamente – sem grande pompa ou fachada – alcançou status de um dos comércios mais tradicionais do Centro velho da capital.

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Pelas mãos de Alceu Gomes de Siqueira, 66 anos, boa parte dos calçados que pisam os petit-pavês de Curitiba, já passaram. Nascido em Campo Alegre, Santa Catarina e radicado na capital do Paraná desde os 4 anos de idade, o sapateiro aprendeu o ofício aos 14 e, mais que profissão, o trabalho com sapatos tornou-se sinônimo de sustento, prestígio e identidade para a família. “Tenho nove irmãos, todos mais velhos. Aprendi com um deles, este, que foi meu primeiro e único trabalho. Na família todos seguimos no mesmo ramo, com exceção de apenas um irmão que decidiu virar açougueiro”, conta.

Aos dezessete, Alceu passou de auxiliar a empreendedor, assumindo seu primeiro negócio, situado no mesmo perímetro da cidade no qual ainda permanece: o número 665 da Rua Saldanha Marinho, a poucas quadras da Praça Tiradentes. Desde então é quase impossível mensurar o número de sapatos que já consertou. Ele revela, no entanto, que a média diária chegava até 35 calçados antes da pandemia. “Agora com o isolamento social o movimento caiu bastante e o pessoal deixou de usar sapato social todo o dia. Isso nos impactou bastante, modo que hoje recebemos em média 10 a 15 calçados por dia pra arrumar”, desabafa.

Mesmo com a queda nos consertos, o serviço na Sapataria Florença continuou durante a pandemia e segue mantendo a democracia de sempre. Das nobres madames dos bairros abonados da cidade às senhorinhas com problemas de joanete. Dos executivos do Centro Cívico que levam os sapatos pra “engraxar”, aos garçons dos restaurantes próximos. Por trás do balcão, o objetivo do seu Alceu é um só: arrumar os sapatos pra que quem os calça possa seguir. Melhor e mais longe.

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Com tanto tempo de serviço, as histórias se acumulam e juntam-se aos sapatos nas prateleiras do comércio. Mas ao contrário dos sapatos, as histórias ficam para sempre. De clientes que chegam descalços, com os sapatos na mão, precisando de conserto urgente, aos fãs das estampas excêntricas e noivas de última hora. De pronto, ele lembrou-se de alguns “causos” para contar à reportagem da Tribuna.

Anjos ou Demônios

Era um dia de semana comum, mas o movimento na sapataria não estava dos melhores. Um conserto aqui, outro ali. Segundo seu Alceu, tudo indicava que aquele dia seria monótono até que dois rapazes mau encarados entraram pela porta. Um deles sentou-se e o outro ficou de pé à beira do balcão. Eles traziam alguns sapatos para arrumar e seu Alceu os atendia com a simpatia de sempre. “Eu brinquei com eles, fiz piadas. Eles eram jovens então, eu esperava que fossem entrar na onda. Mas eles não me deram bola e nenhum sorriso. Um ficou sentado me olhando com a cara feia e o outro encostado em meu balcão com jeito de poucos amigos”, relembra Alceu.

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Coincidentemente, assim que deu início ao conserto dos calçados, uma sequência de clientes começou a entrar na sapataria, a ponto de formar fila para o atendimento. “Antes deles chegarem estava muito parado, mas foi os dois entrarem na loja que o movimento começou. Brinquei com eles de novo agradecendo e dizendo que eles tinham sido meus anjos da guarda daquele dia. Cheguei a brincar com outra cliente dizendo que cobraria menos dos rapazes por eles serem ‘pé-quente’ e terem me ajudado tanto”, conta. Ainda sem retribuir à simpatia, os dois rapazes mau encarados se entreolharam e continuaram quietos, sem dar um pio.

Serviço finalizado, Alceu vem do fundo da loja com os calçados arrumados. “Na hora do acerto eu disse que eles não precisavam pagar. Deixei de graça porque eles me deram sorte”, diz. Foi aí que um dos dois resolveu falar. “Aquele que estava sentado levantou e disse que desde o princípio a ideia era assaltar minha loja, mas que desistiram por conta do bom tratamento que receberam na sapataria”, lembra.

Cinderela perde a hora

“Uma moça entra na loja no começo da tarde. Ela tinha muita pressa e trazia um par de sapatos que queria reformar. Eram belos scarpins que ela queria encapar com um tecido claro, quase branco”. Alceu lembra que era em torno de 13h. “Recolhi o calçado e comecei a preencher a ficha dela quando fui interpelado: ‘preciso pra hoje às 19h’, ela disse. Era impossível mas ela continuou insistindo e implorou dizendo que aqueles eram os sapatos com os quais ela iria se casar naquela noite”, conta Alceu.

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“Era um dia de muito serviço e eu tinha entregas urgentes, mas não tive coragem de deixá-la a ver navios. Quando deu 15h30, fechei a loja pra trabalhar só no sapato da noiva. E modesta parte, o resultado ficou muito bom”, conta o sapateiro. “Às 19h em ponto cá estava ela. Foi calçar o sapato e correr pro altar. Me senti quase como a fada madrinha naquele dia”, brinca.

Segredo da longevidade

Se calçados rendem boas histórias, o segredo para que durem e possam render ainda mais, segundo seu Alceu, é o material do qual são feitos. O sapateiro compara os calçados de hoje em dia com os de antigamente e crava: a diferença, em termos de qualidade, é gritante.

“Antigamente os sapatos eram fabricados com esmero em relação à qualidade. Hoje o que vemos são materiais sintéticos que desgastam e descolam muito fácil. Pode ver! É comprar um sapato que ele dura no máximo 3 a 6 anos em bom estado. Isso se não usar todo o dia”, explica. Por isso, o sapateiro recomenda escolher com sabedoria e atenção aos materiais com os quais foram fabricados os calçados. “O que muita gente vê como gasto, mais pra frente pode significar um grande investimento”, explica.

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Assim como os calçados de antigamente, Alceu afirma que para que um negócio seja longevo, também é preciso investir. “Não basta força de vontade. É preciso conhecer bem seu mercado, seu trabalho e sua clientela. Conhecer a demanda e oferecer um serviço rápido, mas com qualidade é o que faz a diferença no fim das contas”, afirma o sapateiro.

Quando perguntamos, por fim, a que fator Alceu atribui o sucesso da Sapataria Florença, a reposta é humilde. “Acho que pela fidelidade dos clientes e o ponto onde atendo, que é muito bom”, ele diz. Pois bem, seu Alceu, mas não esqueça de um elemento chave: o talento e a dedicação de quase 35 anos de experiência e das mãos “trabalhadeiras” de quem entendeu que humildade, simpatia e respeito a quem quer que seja, ajustam-se bem a qualquer pessoa, assim como um bom par de sapatos.

Sobre o autor

Maria Luiza Piccoli

(41) 9683-9504