O Brasil está no mesmo lugar?

Gaudêncio Torquato

Dois anos de governo Lula. O Brasil avançou? Muito, garantem os petistas, depois de exibirem crescimento do PIB em mais de 5%, "o melhor em 10 anos", índices animadores na balança de exportação, leis aprovadas na Câmara, como a de falências, PPA, programas de inserção social, etc. Pouco ou quase nada, acusam os oposicionistas, depois de mostrarem que, na área social e da educação, houve retrocesso, com inépcia gerencial, trombadas entre os líderes dos programas sociais, desativação de coisas como o Provão e outros programas. Sem entrar na descrição de números e tabelas comparativas, o que se pode deduzir é que o governo Lula está muito aquém daquilo que prometeu, particularmente na seara social, mas tem ido além na condução das estratégias macroeconômicas do País.

Lula começou o discurso de posse usando a palavra mudança como mote. Assinalava o espírito do governo. Em dois anos de administração, não houve alteração substantiva que possa ser cunhada como mudança. O que se percebe com clareza é a fixação mais sólida de pinos na estrutura econômica, fato que tem garantido o risco-Brasil no patamar próximo aos 350 pontos – marca que começa a conferir respeitabilidade – desorganização no planejamento e gerenciamento dos programas sociais, articulação política com certo nível de tensão e marcada por alto grau de fisiologismo, além de querelas intensas no próprio Partido dos Trabalhadores, denotando, isso sim, mudança na concepção da vida partidária, antes com foco em ideário, hoje com ênfase na individualidade de líderes e dirigentes.

A maior surpresa do governo do PT está na consolidação dos princípios macroeconômicos, que garantem ao Brasil inserção positiva na moldura internacional, situação conquistada pelo rigor e pulso com que o médico Antônio Palocci administra o Ministério da Fazenda. Afinal de contas, a obtenção de um superávit primário de mais de 5%, que chega a superar a meta projetada pelo FMI para o Brasil, constitui fato de peso, mesmo que sobre o alto índice recaiam críticas contundentes de políticos e analistas econômicos que gostariam de ver o País usando parte daquele montante no fortalecimento das redes de proteção social.

A maior decepção do governo do PT é mesmo na área social, portanto no espaço que, historicamente, deu fama a Lula e ao partido. Por quase três décadas, o PT chamou para si a condição de paladino dos pobres, carentes e oprimidos, levantando a bandeira da defesa social, do civismo, da moralidade e da ética, em todos os espaços nacionais, nas três esferas da administração pública, no âmbito dos poderes constitucionais e no seio da sociedade organizada. Portanto, seria bastante lógico que o governo petista fosse mais forte na área social e menos impactante na frente econômica. Não por acaso, inverteram-se os papéis críticos dos principais contendores políticos. Parcela de petistas e governistas passou a ser intensamente crítica à atuação do governo na área econômica, enquanto oposicionistas – principalmente tucanos e pefelistas – firmaram posição no palanque crítico da área social.

Na esfera da articulação política, a conta do fisiologismo tem sido alta, na demonstração cabal de que o governo do PT assimila o mesmo ideário do toma-lá-dá-cá. Não por acaso, o PMDB está esfacelado em duas bandas, uma agarrada fisiologicamente à administração, outra, desgarrada, e olhando para os horizontes de 2006, a partir de candidatura própria para a presidência da República. O governo, por seu lado, exerceu o presidencialismo de forma imperial, sendo o recordista no envio de medidas provisórias ao parlamento. Foi mais uma surpresa, levando-se em consideração a execração que o PT do passado fazia em relação àquele instrumento.

A maior falha da administração se dá no campo da operação dos programas sociais. O clima é de improvisação. A sensação é a da falta de quadros e competências para comandar os programas. A conclusão é a de que a desorganização impera. Não há controles, mas muita corrupção e desvios nas ações sociais. Os projetos são paliativos. Como pano de fundo de uma bagunça recheada de estatísticas e molduras descritivas que parecem encenação de marketing, emerge o desconhecimento da verdadeira realidade social do País. Onde estão os famintos? Quantos são? Ora, mas o IBGE não acaba de dizer que há mais obesos e supernutridos que desnutridos?

Os dois anos de Lula mostraram, ainda, um ex-torneiro mecânico que parece se deleitar com o néctar do poder. É o que se extrai dos discursos, às vezes gongóricos, outras vezes locupletados de imagens futebolísticas, e também é o que se pinça de conversas flagradas em bastidores e nos churrascos na Granja do Torto, onde o presidente se refugia nos momentos de lazer. Virá, em, janeiro, um avião moderno para transportar Lula e mais 29 pessoas diretamente de Brasília para Madri, sem escalas. Essa é uma das justificativas para a compra da aeronave presidencial, na tentativa de mostrar que o conforto presidencial deve estar em primeiro lugar. Possivelmente, seja mais uma sinalização de que as viagens internacionais de Lula serão intensificadas, dentro de uma agenda desdenhada para o Brasil conquistar uma cadeira no limitado espaço do Conselho de Segurança da ONU.

Lula entrará na segunda metade do mandato com a imagem melhor que a de seu governo. Mais adiante, nas margens das eleições de 2006, essa situação precisa ser corrigida. O gap entre imagem do governo e imagem pessoal poderá lhe tirar o sono.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político.