Vencendo a covid-19

Imunidade rebanho pode ser atingida com índice menor de infectados, dizem cientistas

Foto: Pixabay.

Dois estudos internacionais recentes levantam a hipótese de que a imunidade de rebanho possa ser alcançada no caso da Covid-19 com um índice menor de infectados do que o inicialmente estimado se considerados os diferentes níveis de interação social dentro de uma mesma população.

Na prática, as pesquisas sugerem que o porcentual de indivíduos infectados que faria o vírus ter dificuldades de continuar se propagando seria bem inferior aos 60% a 70% antes projetados por cientistas – um dos estudos aponta o índice de 43% e o outro, de 20%, em determinadas condições.

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Segundo especialistas em saúde, mesmo que, na teoria, tais modelos matemáticos façam sentido e a imunidade de rebanho possa ser alcançada com menos infectados, as lacunas que ainda existem sobre a doença nos impedem de saber se as cidades brasileiras já estão próximas desse cenário.

E mais: mesmo que elas estejam, essa imunidade coletiva, além de ser alcançada ao custo de mais mortes, não é homogênea entre municípios, bairros e comunidades, o que impossibilita que possamos apostar nela para ficar livres da Covid-19. As medidas de distanciamento social, portanto, continuam sendo importantes para frear o avanço do vírus até que tenhamos uma vacina – essa, sim, capaz de conferir imunidade coletiva confiável.

“Na imunidade de rebanho pela vacina, a gente tem certeza que a pessoa está protegida. Já a imunidade coletiva natural depende de vários outros fatores que não temos controle no caso da Covid. Não sabemos se uma pessoa que teve a doença uma vez fica imune para o resto da vida, não temos certeza quais anticorpos conferem essa imunidade”, destaca Natalia Pasternak, microbiologista, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência.

“Mesmo que estejamos com um índice maior de infectados imunes, não temos como medir isso com segurança, e o máximo que vamos conseguir é manter a doença mais controlada, mas sempre haverá surtos pontuais. Se a gente for usar isso para embasar políticas públicas, vai dar errado”, completa a especialista.

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Lacunas

Diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri reforça que as lacunas sobre a resposta imune do organismo à Covid-19 ainda são grandes e acrescenta que a imunidade coletiva natural depende de muitos outros fatores além do porcentual de infectados.

“Definir um porcentual (de contaminados para a imunidade de rebanho) é temerário porque não depende apenas do número de infectados, mas das dinâmicas de interação, dos adensamentos, tipos de moradia. Em alguns locais, é muito mais difícil esgotar a cadeia de transmissão”, afirma o especialista.

Mesmo nos casos de imunidade de rebanho por vacina, o porcentual ideal de pessoas imunizadas para evitar novos surtos é de 90% a 95%, afirma Kfouri. Os próprios estudos que indicam que a imunidade de rebanho possa ser alcançada com menos infectados destacam as limitações desse tipo de projeção.

Ambas as pesquisas apostam na premissa de que, considerando que alguns indivíduos têm mais interação social do que outros e que há diferenças biológicas que os tornam menos ou mais suscetíveis essa heterogeneidade da população deve ser levada em consideração para calcular a taxa de transmissão e, consequentemente, o porcentual necessário para alcançarmos a imunidade de rebanho.

Em outras palavras, se pessoas com mais interação social estão mais sujeitas a se infectar antes, elas também podem ficar imunes antes e não serem super disseminadoras do vírus, o que permitiria que essa imunidade coletiva pudesse ser alcançada antes.

O brasileiro Caetano Souto Maior, pesquisador do National Institutes of Health (NIH) dos Estados Unidos, é coautor de um dos estudos e destaca que, embora os modelos considerem diferentes cenários, a evolução real da pandemia depende do comportamento das pessoas, das dinâmicas das cidades e das medidas adotadas pelos governos, dados que são impossíveis de prever com 100% de certeza.

“Mesmo considerando que os comportamentos são heterogêneos, eles são dinâmicos e variam de lugar para lugar. Quando a gente tem uma situação em que esse nível de interação fica mais homogêneo, como quando muitas pessoas de diferentes perfis ficam aglomeradas, como no transporte público, essas projeções podem mudar”, afirma.

Uma limitação desses estudos é que ainda não se sabe se a imunidade adquirida pelas pessoas recuperadas da Covid-19 é duradoura. Por enquanto, como não há casos comprovados de reinfecções, acredita-se que o novo coronavírus gera uma imunidade que dura um período significativo de tempo, mas passados apenas seis meses do início da pandemia, ainda não é possível saber exatamente por quanto tempo duram as defesas do corpo contra vírus.

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O que dizem os estudos

Um estudo publicado na Science no final de junho mostrou que a heterogeneidade das populações pode ter um impacto significativo sobre a imunidade coletiva induzida pela doença. Os matemáticos da Universidade de Estocolmo (Suécia) e da Universidade de Nottingham (Reino Unido) estimaram que a imunidade coletiva pode ficar em torno de 43% em uma população que tenha determinados níveis de atividade social e de idade.

“Nossas estimativas devem ser interpretadas como uma ilustração de como a heterogeneidade da população afeta a imunidade de rebanho, e não como um valor exato ou mesmo como a melhor estimativa”, ressaltam os pesquisadores no artigo.

O estudo de co-autoria do pesquisador brasileiro Caetano Souto Maior, publicado na plataforma medRxiv, também mostra como a variação da suscetibilidade e da exposição da população à infecção pode reduzir ou aumentar as estimativas para a imunidade coletiva. A pesquisa ainda não passou por revisão de outros especialistas.

Mas enquanto as populações não atingem o número suficiente de imunizados para frear os contágios, ou enquanto não há uma vacina, o que se pode fazer é seguir outras medidas que também têm esse efeito de contenção da epidemia. As pessoas que seguem as regras de distanciamento social, usam máscaras e mantêm hábitos de higiene têm mais chances de, na prática, serem removidas da cadeia de transmissão, assim como acontece com os imunizados.