Delegacia de crimes contra a vida está falida

Em vez de reza, uma praga de alguém…”. A letra da música “De frente pro crime”, de João Bosco, já retratava na década de 70 a banalização dos crimes contra a vida. Em pleno 2004 ela está mais atual que nunca. Os crimes aumentaram de forma vertiginosa e a violência ocorre em qualquer esquina. Para piorar, a única delegacia de Curitiba especializada em investigar esses delitos, está praticamente falida.

Quatro equipes de plantão, integradas por quatro policiais cada; quatro delegados; quatro escrivães e apenas dois investigadores. Este é o efetivo encarregado de fazer a Delegacia de Homicídios sobreviver a duras penas, com um registro médio mensal de 30 assassinatos, além de tentativas de homicídio, lesões corporais e suicídios. Os mesmos policiais têm que atender locais de crimes, registrar queixas, cuidar de presos, e ainda fazer os serviços burocráticos. Além dos casos atuais, estão empilhados por lá cerca de dois mil inquéritos antigos, ainda sem autoria.

O resultado desse descaso é a impunidade. Como a maioria dos crimes fica insolúvel por falta de investigação, um homicida pode se transformar em um assassino em série. Enquanto a impunidade reina, as famílias das vítimas tem que se conformar e esperar por Justiça.

Aumento

Levantamentos realizados nos boletins de ocorrências da própria delegacia, apontam que esse ano aconteceram 155 homicídios (até 27 de abril); 57 tentativas de homicídios; 20 lesões corporais e 29 suicídios. Nos primeiros quatro meses do ano passado foram 119 assassinatos. O número total, em 2003, de tentativas de homicídio foi 160; 88 lesões corporais e 75 suicídios. Esse ano, os registros devem ser bem maiores, tomando por base os quatro primeiros meses.

A pesquisa revela ainda que 33 pessoas foram assassinadas no mês de janeiro de 2004; 57 em fevereiro; 35 em março e 30 até o dia 27 de abril. Para piorar a situação, das 261 ocorrências registradas, cerca de 10% foram elucidadas. O número é irrisório, mas a falta de pessoal impede que os policiais resolvam outros casos, já que apenas dois estão designados para investigar os crimes. Outros 17 investigadores fazem o serviço diário da delegacia, revezando-se a cada 24 horas. Eles atendem as ocorrências, fazem os primeiros levantamentos, registram e expedem guias para a liberação do corpo para a família. Nos homicídios em que os autores são identificados no local, o boletim de ocorrência é feito pelo distrito da região onde ocorreu o crime. Em alguns casos, os distritos também atendem os assassinatos e registram queixas de lesões corporais e tentativas de morte sem autoria conhecida. Não existe um levantamento de quantas ocorrências não passam pela Delegacia de Homicídios.

Esquecimento

A maioria das investigações se encerra mesmo antes de começar. Muitas vezes acontecem vários crimes ao mesmo tempo e, se no local, não for apurada a autoria, a situação acaba no esquecimento, já que quando os plantonistas retornam para um novo dia de trabalho, precisam atender casos novos. Apenas dois policiais continuam as investigações diariamente, mas devido ao excesso de trabalho elas não são feitas como deveriam ou simplesmente são esquecidas.

De acordo com o quadro da Delegacia de Homicídios há outros funcionários, mas eles estão em férias. “Não repuseram nem o número de policiais afastados com a confusão que aconteceu no final de fevereiro”, disse um policial, que prefere não ser identificado, referindo-se à prisão de três policiais acusados de extorsão e o afastamento de outros cinco, que aguardam designação para outras delegacias.

Dos policiais que atuam na Homicídios, até o delegado titular acumula funções. Ele é também o chefe da Divisão de Crimes Contra o Patrimônio. O superintendente, a secretária e um investigador da especializada também são emprestados da mesma divisão.

Em 20 anos, tudo piorou

O número de policiais lotados na Delegacia de Homicídios é menor do que no início da década de 80, comparado ao crescimento da população e ao índice de criminalidade. A informação é do delegado aposentado Antônio Simião, que era investigador da especializada na época. Ele lembra que ocorriam cerca de oito assassinatos por mês e três equipes, compostas de dois policiais cada, apuravam os autores dos casos. Além disso, havia mais 16 policiais no plantão, o superintendente, cinco escrivães, e dois delegados, sendo um titular e um adjunto. De 1980 para cá, a população aumentou. Curitiba não tinha nem um milhão de habitantes, hoje já tem mais de um milhão e meio. Segundo Simião, os crimes ocorriam com freqüência na Vila Oficinas, Centenário, Jardim Paranaense, Vila das Torres. Regiões como o Sítio Cercado e Cidade Industrial, onde há um grande número de assassinatos, eram despovoadas. “No centro só ocorriam suicídios”, recorda.

Investigações

As investigações naquela época eram feitas com um Fusca branco e poucas ficavam sem solução, já que em média cada equipe trabalhava em dois ou três homicídios por mês. “A questão não é só atender local, mas dar continuidade no caso”, diz Simião. Ele acredita que seria necessário pelo menos cinco equipes de investigação para trabalhar na DH.

Também o perfil dos assassinos era outro há 20 anos. “Os motivos mais freqüentes eram relacionados a honra, como ofensa moral, passionais ou bebedeiras”, diz. Hoje, a droga é o principal motivo dos assassinatos, ficando na casa de 80%. Em seguida vêm as brigas de gangues e acertos de contas. “A polícia precisa melhorar como um todo. Há vários latrocínios e os traficantes tomaram conta da cidade”, assegura o policial. “A Homicídios trabalha para descobrir os autores de mortes. Mas os motivos destas mortes, normalmente, estão ligados a outros crimes que são investigados por outras delegacias.

É um ciclo”, enfatizou. “O viciado furta em casa para comprar droga, depois parte para pequenos furtos fora de casa e na seqüência começa a praticar assaltos. Os produtos são vendidos para receptadores. Todos estes crimes são investigados pela Furtos e Roubos. O viciado também é morto porque deve dinheiro para o traficante, e o tráfico é investigado pela Antitóxicos”.

Efetivo

Ele acredita que o efetivo e as condições de trabalho, também precisam melhorar nas outras delegacias, especialmente na Furtos e Roubos, Furtos e Roubos de Veículos e Antitóxicos. “Ao longo da minha carreira, percebi que a população carcerária cresceu e o efetivo da Polícia Civil não foi reposto. Infelizmente hoje tenho colegas cuidando de presos, viraram carcereiros. Na década de 80, o preso ficava na delegacia apenas durante a investigação. Nunca ultrapassava 30 dias”. (VB)

Lembranças dos bons tempos

Há onze anos na área policial, o repórter Edson Thomaz, da Rádio Clube, lembra que a Delegacia de Homicídios era uma referência para os repórteres. “Não precisa voltar muito no tempo. Em 2000, na gestão do delegado Fauze Salmen víamos resultados. Hoje a delegacia está jogada às traças”, conta o radialista. A opinião de Thomaz é compartilhada pelo colega Sidney Alves, da Rádio Eldorado, que trabalha na área policial há sete anos. “Nem faz tanto tempo que íamos na Delegacia de Homicídios todas as manhãs, fazer matérias. Hoje os crimes acontecem e não são solucionados”, revela Sidney.

Thomaz lamenta que uma delegacia tão importante esteja nesta situação. “Não tem delegado titular definitivo. O atual (Luiz Carlos de Oliveira) acumula funções desde o final de fevereiro. As investigações são feitas pela metade”, lamenta. “Será que tem um delegado competente nos quadros da Polícia Civil que possa assumir a Homicídios?”, desafia Thomaz. “Há quatro anos, a Delegacia de Homicídios chegava primeiro no local. Hoje a imprensa chega primeiro. Eles ficam sabendo dos crimes por nós”, confidencia Sidney.

Sem importância

Thomaz comenta que hoje a direção da Polícia Civil não dá nenhuma importância para a Delegacia de Homicídios. “Os melhores policiais estão no Cope (Centro de Operações Policiais Especiais), Nurce e Tigre, investigando crimes de colarinho branco e quadrilheiros. Há distritos em melhores condições que a Homicídios”, salienta.

Os radialistas criticam até mesmo a localização da Delegacia de Homicídios, na Rua Ermelino de Leão, Alto São Francisco. Eles acreditam que se a especializada funcionasse mais perto do Instituto Médico Legal (IML), na Avenida Visconde de Guarapuava, no centro, ficaria mais fácil, inclusive para as famílias das vítimas.

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