Crueldade contra os homossexuais

Um dos mais combativos militantes homossexuais do Brasil estará em Curitiba hoje para denunciar o que ele classifica de crimes homofóbicos: a alta incidência de assassinatos de gays, travestis e lésbicas em Curitiba, a maioria de forma cruel e com o uso de extrema violência. Luiz Mott, presidente do Grupo Gay da Bahia (GGB) e professor de Antropologia da Universidade Federal daquele Estado, afirma que a capital paranaense sofre de uma contradição sociológica. Enquanto é apontada nacionalmente como modelo de progresso urbano e civilização, a cidade é também cenário de um “índice alarmante de desumanidade”, aponta Mott.

Em parceria com o Grupo Dignidade, que atua no Paraná, o GGB coleta dados sobre assassinatos de homossexuais em todo o Brasil e especificamente no Paraná. Em Curitiba, o Grupo Dignidade conta inclusive com recursos do governo federal, dentro do projeto “Rompendo o Silêncio”, para que uma advogada acompanhe todos os casos. “Com a verba, podemos adquirir diariamente a Tribuna, nossa principal fonte de consulta”, diz Toni Reis, presidente do Dignidade.

De acordo com o levantamento que Luiz Mott tem em mãos, de 1975 a 2002 pelo menos 92 homossexuais foram mortos. Mott lembra que o número deve ser maior, devido à condição reprimida dos gays, que na maioria das vezes não revelam sua orientação sexual.

Violência

O militante lembra que os dados são preocupantes porque revelam, também, que a violência vem crescendo. Foram três mortes na década de 70, 23 nos anos 80, cinqüenta na década de 90 e dezesseis do ano 2000 até agora. “São homicídios em que a condição existencial da vítima – pertencer à minoria social mais estigmatizada em nossa sociedade – tornam o gay, travesti e lésbica presas mais vulneráveis às agressões físicas e latrocínio (matar para roubar)”, aponta Mott.

Do total de 92 vítimas, segundo a estatística do GGB, 63 eram gays, 27 travestis e duas lésbicas. “Dentro da comunidade homossexual, os travestis, apesar de não ultrapassarem mil indivíduos no Paraná, são os mais vulneráveis aos crimes homofóbicos, sobretudo devido ao fato de exercerem a prostituição em áreas centrais onde a violência e marginalidade costumam ser maiores”, comenta Luiz Mott.

Dos 92 crimes registrados pelo GGB, 81 ocorreram em Curitiba, constando ainda três casos em Londrina e em São José dos Pinhais, dois em Cascavel e um em Paranaguá, em Maringá e em Bela Vista do Paraíso. “Uma pesquisa sistemática nas delegacias de polícia das demais cidades paranaenses localizará muitos mais crimes”, afirma o militante.

Entre os homossexuais assassinados, um terço morava na região central de Curitiba. Quase todos foram executados dentro de seus apartamentos ou casas. Segundo Mott, geralmente os gays são mortos a facadas dentro de casa, enquanto os travestis, a tiros, na rua ou em bares – com maior freqüência, nas noites e madrugadas de fins de semana.

A maior parte das vítimas tinha entre 18 e 40 anos. Pertenciam a mais de trinta diferentes categorias profissionais: professores, jornalistas, economistas, setor bancário, imobiliário, comércio, analistas de sistema, atores, e ainda gays e travestis da chamada classe “c”: profissionais do sexo, ambulantes e desempregados. “Citem-se ainda nesta lista fúnebre um ex-vereador de Cascavel, e ainda um pai-de-santo e um maestro, estes dois últimos de Curitiba”, enumera Luiz Mott.

De acordo com o GGB, apenas 25% dos assassinos foram identificados pela polícia. Metade destes eram michês (garotos de programa).

Assassinatos devem ter mais divulgação

O aumento no número de assassinatos de homossexuais em Curitiba acompanha a onda crescente de violência e crueldade na última década em toda a sociedade. Para Toni Reis, presidente do Grupo Dignidade, atualmente todos os cidadãos estão sujeitos à violência, mas é importante denunciar os crimes contra gays e travestis para que o assunto não seja esquecido. “Nos Estados Unidos, cada vez que um homossexual é morto os grupos fazem uma barulheira, a imprensa repercute”, observa Reis.

Para ele, cerca de 60% a 70% dos crimes contra gays catalogados pelo grupo podem seguramente ser considerados homofóbicos, ou seja, motivados por preconceito e ódio a uma minoria social. Isso explicaria a crueldade de alguns assassinatos. Os demais seriam latrocínios e/ou violência gratuita e exacerbada, “infelizmente cada vez mais presentes na vida dos brasileiros, vítimas diárias desse mal”, diz.

Evolução

Toni Reis aponta, por outro lado, pontos positivos e uma gradual evolução na sociedade como um todo e dentro da própria polícia paranaense no tratamento a homossexuais. “Antigamente, o Dignidade recebia queixas diárias sobre casos de espancamento gratuito, extorsão, chantagem e abuso de poder por parte de policiais. Atualmente registramos apenas uma denúncia por mês”, afirma.

Nos arquivos da Tribuna, é comum encontrar registros de procedimentos “habituais” da polícia até o início da década de 90: “arrastão” de travestis, que eram colocados em grupo no camburão e levados presos por acusação de “vadiagem”. “Isso não acontece mais”, observa o presidente do Dignidade.

Para eles, um grave problema enfrentado não só pelos homossexuais como por todos os cidadãos é a falta de estrutura das polícias Civil e Militar. “Acompanhamos de perto todos os casos e percebemos que, infelizmente, nossa polícia carece de condições para trabalhar. Falta estrutura para investigar, equipamento, efetivo, e até mesmo acompanhamento psicológico. Já vi muito PM trabalhando estressado, sob pressão”, comenta Reis.

As vítimas da violência

Alguns dos assassinatos de homossexuais ocorridos em Curitiba chamaram a atenção não apenas pelo nome das vítimas – pessoas bastante conhecidas – como também pela crueldade empregada pelos autores. Cleon Jacques, diretor de teatro, foi assassinado em seu apartamento em janeiro de 1997 com sete facadas. Já o jornalista Roberto Coutinho, também morto em 97 dentro de seu apartamento, sofreu diversos tipos de violência. Foi espancado, torturado e teve as mãos amarradas, antes de ser estrangulado. Coutinho e Cleon moravam na região central da cidade e eram jovens.

Também jornalista, Eddy Franciosi teve a cabeça esfacelada por pancadas em setembro de 1990, em seu apartamento. Ele tinha 60 anos, escrevia colunas sociais e peças de teatro. O corpo foi encontrado sobre a cama, de cueca, amordaçado e com pernas e braços amarrados. Franciosi também foi asfixiado. O autor do crime foi um garoto de programa que havia passado a noite com ele.

Adelmo Gangel, 34 anos, era vendedor de consórcios. Foi encontrado morto em janeiro de 93, em condições parecidas às de Franciosi. Estava nu, sobre a cama, em seu apartamento, com mãos e tornozelos amarrados, e tinha sido estrangulado, depois de fazer sexo com um michê.

A morte de Adelmo motivou um protesto por parte do Grupo Dignidade. Os militantes forneceram à polícia e à imprensa uma lista com dezenas de nomes, todos gays, vítimas de crimes parecidos. Muitos deles, ocorridos entre 92 e 93, apontavam para um autor descrito como um rapaz louro e alto, que além de matar roubava pertences das suas vítimas.

Sauna

O professor de Educação Física Marcos Samy Silva, 49 anos, estava na Sauna Caracala na noite de um domingo, em dezembro de 98, quando entraram seis assaltantes armados e mandaram que todos ficassem quietos, deitados de bruços no chão. Samy esboçou um gesto para se levantar porque estava passando mal e precisava tomar um remédio, mas levou quatro tiros de pistola. Havia outros doze usuários da sauna no momento do crime. Um dos funcionários comentou que Samy raramente aparecia na sauna.

Casos de travestis assassinados também estão listados no levantamento do Grupo Gay da Bahia e Grupo Dignidade. Um deles motivou o afastamento de policiais militares, acusados de espancar “Kérica”, um travesti de 22 anos que fazia ponto no centro da cidade. “Kérica” havia se desentendido com um cliente por causa do pagamento, na noite de 1.º de abril de 2000. O homem voltou ao ponto, acompanhado de dois PMs. “Kérica” apanhou bastante mas, em vez de ir ao hospital, foi caminhando para casa, no Guabirotuba. Chegou a comentar o caso com outro travesti que morava com ele, deitou na cama por volta de 4h30 e aparentemente dormiu. Às 11h30 o amigo constatou que estava morto.

“Bia Simon”, por sua vez, foi assassinado a pauladas dentro de sua casa, no Boqueirão, em julho do mesmo ano. “Bia” tinha ido para casa acompanhado por um homem. Ele era famoso na noite curitibana: já havia ganhado diversas vezes o concurso Gala Gay. O Vectra branco de “Bia” foi roubado, e também o celular e outros objetos da casa.

De acordo com Liza Minelly, presidente do Grupo Esperança (de proteção aos travestis), têm sido registrados nos últimos três meses alguns casos de travestis mortos por facadas, cujos corpos foram enrolados em lona de caminhão e desovados. Um dos casos ocorreu no Cajuru, outro em Araucária e um terceiro na BR-116, Pinheirinho. “Estes casos, todos com as mesmas características, estão nos preocupando”, diz Liza.

Comportamento de risco

O outro lado da moeda do assassinato de gays é o comportamento de risco que muitos homossexuais ainda mantêm, tornando-se alvos fáceis para latrocínios e crimes violentos. Para evitar esse tipo de situação, o Grupo Dignidade dá algumas orientações básicas. A primeira delas é não levar michês (garotos de programa) para casa. “É sempre melhor fazer o encontro em hotel, motel ou sauna”, diz Toni Reis.

Outro detalhe importante é combinar o programa antes de fazê-lo. “Tudo tem que ser acertado: o que vai ser feito e o preço”, afirma Reis. Discussões – e morte – por causa de pagamento não são incomuns.

A terceira recomendação é apresentar carteira de identidade no hotel. Se for fazer programa em casa, procurar manter contato e amizade com vizinhos, para eventualmente poder gritar por socorro e pedir ajuda.

Outro conselho importante, diz Toni Reis, é não ostentar símbolos de riqueza ou poder, tais como jóias, carro importado e bens de valor. “O gay que vai fazer um programa deve lembrar que a maioria dos michês são garotos de origem humilde, com poucas posses”, observa o presidente do Dignidade.

Infelizmente, nenhuma dessas recomendações foi seguida pelo cônsul de Portugal, Miguel José Fawor, assassinado com 42 anos em março de 2000 por dois garotos de programa. Além de ter chamado os dois michês para ir à casa dele, no bairro Batel, Fawor estava sozinho na residência quando os recebeu. Havia conhecido os garotos em saunas e clubes gays. Fawor tinha um Mercedes na garagem, usava jóias e relógios caros, e dentro de casa exibia objetos de valor, tais como perfumes importados, uma faca de prata e dólares. Além disso, o cônsul havia se desentendido com um dos assassinos por causa do pagamento do programa – ofereceu menos do que o michê esperava, e depois de já ter consumado o encontro.

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