Bicheiros em pé de guerra

“Um banho de sangue entre bicheiros e contraventores que exploram máquinas caça-níqueis está para acontecer a qualquer momento, já que pistoleiros do Rio de Janeiro e do Espírito Santo – estes da Escuderia Detetive Le Coqc – estão em Curitiba prontos para agir. Os criminosos só aguardam ordens do chefões do jogo do bicho, que pretendem desencadear uma mortandade no Paraná e tomar todo o negócio das máquinas que funcionam sem o esquema níquel-bicho de venda casada.” O alerta foi feito através de uma extensa denúncia encaminhada para a Ordem dos Advogados do Brasil, Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, Secretaria Nacional da Segurança Pública do Ministério da Justiça, Procuradoria Geral da Justiça do Paraná, Promotoria de Investigações Criminais, Secretaria da Segurança Pública do Rio de Janeiro, Corregedoria da Polícia Civil do Paraná e Polícia Federal.

Na carta, com nove páginas e centenas de informações detalhadas a respeito da atuação dos bicheiros no Estado, constam ainda informes sobre assassinatos, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, evasão de divisas, corrupção de agentes públicos, fraudes contra a Caixa Econômica Federal e muitos nomes de pessoas supostamente envolvidas com todo o esquema. Os nomes dos advogados e autoridades que receberam o documento serão preservados, por questão de segurança, até que as investigações atinentes às denúncias sejam iniciadas.

Mortes

O jogo do bicho no Paraná, apesar de ser uma contravenção penal, sempre foi tolerado pelas autoridades e acontece abertamente, anexo a qualquer casa lotérica. A tolerância, segundo as próprias autoridades, ocorria porque funcionava apenas o jogo, sem trazer outros crimes em sua esteira, como comércio de armas ou tráfico de entorpecentes. Atualmente, ao que parece, o panorama está mudando. Muitos lotéricos que também trabalham com o bicho não escondem a preocupação a respeito dos novos e violentos rumos que a contravenção está tomando.

A principal demonstração de que as coisas estão descambando para a violência foi o assassinato do bicheiro Almir Solarewicz, ocorrido em 20 de setembro de 2000, em um bairro nobre de Curitiba. Executado com sete tiros por dois homens, o caso até hoje está parcialmente solucionado, com apenas um indíviduo preso – Otaviano Sérgio Macedo, o “Serginho” – acusado da autoria do delito. O outro pistoleiro nunca chegou a ser identificado e o acusado nega sua participação no crime.

Em abril deste ano, o 6.º Distrito Policial reabriu o caso, assegurando ter novas e importantes informações. A mulher de Almir também resolveu cooperar e prestou longos depoimentos, assim como o filho do bicheiro. Ambos apontaram o concorrente da vítima, Francisco Feitosa, como mandante do crime. Feitosa nega e as investigações estão tendo continuidade também com o apoio do Ministério Público, em ritmo lento.

Cooperativa

Os prejuízos sofridos pelo jogo do bicho, a formação de uma cooperativa dos bicheiros para que se fortelecessem econômica e politicamente, o assassinato do bicheiro conhecido por “Japonês” em Paranaguá, outro crime dentro da própria cooperativa, o surgimento dos caça-níqueis, mais desentendimentos entre os bicheiros, e a morte de Almir, culminaram numa crise sem precedentes dentro da contravenção e deflagraram a guerra pelo poder.

A denúncia encaminhada às autoridades revela ainda que poderosas quadrilhas se formaram a redor dos bicheiros, ora para protegê-los ora para obedecer as ordens de assassinatos ou roubo de máquinas caça-níqueis dos concorrentes. Há ainda informações de que a cooperativa se associou com a Escuderia Detetive Le Coqc, que nada mais seria do que um grupo de extermínio que serve aos interesses de organizações criminosas em todo o Brasil, e conta também com os serviços de uma advogada e um amigo dela, este envolvido com roubo e desvio de cargas. A proteção final para que toda a organização funcione estaria sendo feita por policiais da ativa e ex-policiais civis e militares.

Um milhão de reais por dia

Conhecido entre os apostadores como o jogo “mais honesto do Brasil”, o bicho atrai milhares de apostas todos os dias e movimenta, em Curitiba e Região Metropolitana, cerca de um milhão de reais por dia em seus 7.500 pontos. Antigamente o dono de cada ponto recebia em média 25% do valor arrecadado. As apostas eram feitas manualmente e colocadas em envelopes que então eram coletados – juntamente com o dinheiro – e levados para a banca de determinado bicheiro. Cada bicheiro podia ter inúmeros pontos em cada bairro e cerca de 50 motociclistas realizavam o serviço de coleta para cada banqueiro.

Os dois sorteios diários eram realizados no Rio de Janeiro. Num centro ou “fortaleza” como também eram conhecidos os locais de conferência dos jogos, as apostas eram somadas e os jogos registrados em computadores, impressos e guardados. O resultado ficava por três dias à disposição do ganhador, que tinha este prazo para reclamar seu prêmio. Em gavetões gigantescos todos os resultados eram arquivados e zelosamente cuidados por um funcionário de confiança.

O bicho sempre deu emprego para centenas de pessoas entre coletores ou os que trabalhavam na contagem, separando apostas, contando o dinheiro, separando notas e moedas. Quando o apostador perdia o horário para jogar, podia se dar ao luxo de apostar por telefone. A ligação ficava gravada para evitar reclamações por enganos quanto ao número das apostas.

Crise

Como cada um cuidava de si, o jogo do bicho não enfrentava problemas como disputa pelo poder ou coisa semelhante. Os maiores problemas eram os financeiros, quando a banca perdia muito e mesmo assim pagava as apostas para não perder a credibilidade. No entanto, golpes armados pelos próprios funcionários, que simulavam assaltos ou “blitz” policial para ficar com o dinheiro arrecadado, também incomodavam, tanto quanto os “funcionários de confiança” que vez por outra trapaceavam, trocando bilhetes não sorteados por outros com os números ganhos, para depois dividir o prêmio com o falso ganhador.

Em 1995, depois de uma grande investida do governo do Estado contra o jogo do bicho, que ganhou o nome de “Operação Grande Festa”, os bicheiros, por sugestão de Almir Solarewicz, uniram-se em uma cooperativa. Eles somaram as forças dos bicheiros da capital e alguns do interior, centralizando os valores arrecadados e a posterior distribuição. Almir foi o líder da cooperativa durante vários anos, até decidir vender sua parte e ficar com somente 4,9% do rendimento total arrecadado pela organização.

Há cerca de 3 anos Almir quis voltar ao ramo do jogo e passou a trabalhar com as máquinas caça-níqueis, o que desagradou os bicheiros, pois as máquinas faziam diminuir as apostas nos números dos bichos. Começaram os desentendimentos, houve ameaças e Almir terminou assassinado.

Assassinato de Almir foi o terceiro

Antes da morte de Almir Solarewicz (ocorrida em setembro de 2000) outras duas mortes já haviam manchado com sangue a fama de que o jogo do bicho no Paraná era “inofensivo”. De acordo com a denúncia encaminhada às autoridades – com um alerta para que providências sejam tomadas antes que ocorra uma matança no Estado -, em 1999, em Paranaguá, os pontos do bicho estavam sendo disputados pelos bicheiros conhecidos por “Japonês” e “Joel”, donos de casas lotéricas na cidade. Como também naquele ano começaram a entrar os caça-níqueis no litoral a disputa ficou acirrada. “Japonês” foi executado então, para deixar o caminho livre para seu concorrente, que tinha dívidas com os chefões da cooperativa. Com a morte de “Japonês” sua banca foi absorvida pela cooperativa.

No local do crime, um terreno baldio, foram encontradas luvas de látex supostamente usadas pelo assassino, para não ter impressões digitais na arma nem marcas de pólvora nas mãos e rastros de uma motocicleta. Até hoje, na cidade, muita gente diz saber quem é o autor, mas ninguém se atreve a falar e o crime está insolúvel.

Impunidade

A denúncia revela ainda que no ano seguinte à morte de “Japonês”, um dos seguranças da cooperativa matou a tiros, dentro do estabelecimento, um homem ligado ao jogo do bicho que estava se desentendendo com um dos líderes. Tal crime, segundo o denunciante, não chegou sequer a motivar a abertura de inquérito policial e até hoje não foi investigado. A família do morto vive escondida.

Depois a vítima foi Almir, que havia chegado a propor a legalização do jogo do bicho, transformando-o no que chamou de “jogo dos sonhos”. Isso irritou profundamente seus concorrentes, pois o próprio Almir, ao vender sua parte na cooperativa, havia lucrado muito e os que ficaram com o negócio achavam que a legalização iria reduzir a margem de lucro além de ter a concorrência dos caça-níqueis. Os dois pistoleiros que fuzilaram Almir teriam recebido R$ 500 mil para o serviço e outros R$ 200 mil foram distribuidos para mais algumas pessoas para que os assassinos ficassem impunes. Um dos matadores seria Otaviano Sérgio Macedo, o “Serginho”, que está preso, e o outro o ex-PM Monfredo Flores Mondragon, que já foi integrante do extinto Grupamento Especial de Busca da Polícia Militar e seria segurança pessoal de bicheiros. Ele está sendo investigado.

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