Álcool, o suicídio silencioso

Dados alarmantes indicam que só no ano passado 85 mil brasileiros foram internados em clínicas e hospitais por transtornos mentais e comportamentais provocados pelo alcoolismo. Enquanto aumentam as campanhas contra o uso de drogas ilícitas e contra o cigarro, pouca gente tem se importado em combater os efeitos nocivos do álcool na sociedade. Bebidas alcoólicas, vendidas em qualquer lugar e para qualquer um, são tidas como uma drogas lícitas, porém não menos perigosas que outras proibidas, como a maconha, a cocaína e o crack. E pior, os brasileiros estão começando a beber cada vez mais cedo. A média de idade é de 13 anos e 4 meses para a ingestão do primeiro copo de bebida, normalmente tomado dentro de casa. A associação do álcool às festas e sentimentos de prazer incentivam o consumo e podem destruir uma vida, além de desestabilizar famílias inteiras.

Para a doutora Ângela M.B. Monteiro, psiquiatra e psicoterapeuta que há mais de 20 anos trabalha com dependentes químicos, a sociedade precisa acordar para os perigos do álcool e tratar o problema de forma mais severa. “Principalmente no tocante ao jovem, que se torna uma presa fácil das armadilhas proporcionadas pelas propagandas e pela cultura nacional que coloca a bebida como um meio de interagir com o grupo”, explica ela.

Ângela, assim como outros especialistas da área, alertam que o álcool é a porta de entrada para outras drogas. A professora Sandra Schiovetto, de São Paulo, em recente estudo informou que por ser a adolescência uma fase de experimentação fica mais fácil o contato com outras drogas. E quando se leva em conta o metabolismo de pessoas mais jovens, os perigos aumentam, pois “os efeitos são potencializados”.

No Brasil é proibida a venda de bebidas alcoólicas para menores de 18 anos. No entanto, na prática, esta é uma lei que nasceu para ser desobedecida. Com tantos problemas sociais e de segurança pública, não há gente suficiente para fiscalizar tal comércio e o resultado é que se pode ver adolescentes e até crianças comprando e consumindo bebidas alcoólicas em qualquer lugar: desde lojas de conveniência em postos de combustíveis até bares, boates e mercados.

Prejuízos

Além dos prejuízos físicos e emocionais provocados pelo álcool, são grandes também os prejuízos financeiros. O Brasil investe por ano 7,3% do Produto Interno Bruto (PIB) no tratamento de pessoas com problemas relativos ao alcoolismo. Em contrapartida, a indústria do álcool movimenta anualmente 3,5% do PIB. Isso significa que o País gasta o dobro do que é investido em tratamentos e não lucra nada com isso.

Nos Estados Unidos o problema também é grande, pois uma em cada três famílias sofre com um alcoólatra e cerca de 50 por cento das crianças atendidas em ambulatórios psicológicos ou psiquiátricos são oriundas de uma família que tem problemas com o alcoolista. “Em outros países a convivência com o álcool é mais regrada e quando as propagandas passaram a alertar para os perigos advindos dele houve a redução de 23% no número de mortes em acidentes e 16% no consumo de bebidas”, explica Ângela, enfatizando que proibir propagandas e bebidas alcoólicas já seria um bom começo para combater o problema. “No ano passado a Organização Mundial de Saúde fez um apelo aos governos para que restringissem as propagandas”, explicou ela.

Consumo está aumentando

Em 26 anos – de 1970 a 1996 – o consumo per capita de bebidas alcoólicas aumentou no Brasil em 74,53%. Isso significa que cada brasileiro estava ingerindo 5,57 litros de álcool puro em 1996. “Acredito que este número já tenha aumentado”, revela a psiquiatra Ângela Monteiro. Ela salienta ainda que o Brasil é um mercado promissor para o álcool e outros países tratam de investir aqui no comércio do produto. “O resultado disso tudo ainda é desconhecido. Como isso vai refletir na população?”, pergunta ela, já ressaltando que o aumento da violência, da pouca valorização da vida e até dos acidentes pode ser reflexo desta escalada do álcool.

No tocante ao uso de álcool por adolescentes, as pesquisas realizadas em todo o mundo indicam que os efeitos são desastrosos não só no comportamento mas também para o futuro desses jovens. Exames realizados em grupos de pessoas que começaram a beber muito cedo demonstraram que o álcool provoca uma espécie de redução no tamanho do cérebro de cerca de 10%. Até cerca de 10 anos atrás, acreditava-se que os danos no cérebro eram provocados após décadas da ingestão de bebidas alcoólicas. Nos últimos dois anos, no entanto, com a utilização de exames mais modernos (como a tomografia computadorizada), foi possível demonstrar que jovens alcoólatras tem hipocampos (parte do cérebro relacionada à memória)10% menores dos que os que não bebem. Os estudos foram feitos pela Universidade de São Paulo (Unifesp)- que constatou que os estímulos auditivos dos jovens que bebem também são reduzidos -, e ainda pelo Centro Médico de Universidade de Pittsburgh e pela Universidade da Califórnia (São Diego), ambas nos Estados Unidos.

Outro dado importante apurado pelos estudiosos é que fica difícil impedir que cerca de 50% a 60% dos jovens continuem a beber compulsivamente após o primeiro gole. Isso porque eles podem ter predisposição genética para o vício. Seria uma espécie de trágica herança que passa de pai para filho. O cérebro destes jovens, suspeitam os cientistas, produziria menos dopamina (um neurotransmissor ligado à sensação de prazer). Sendo assim, no primeiro gole o adolescente sente um prazer antes nunca sentido, que o faz repetir a experiência por incontáveis vezes. (MC)

Difícil admitir a doença

O alcoolista normalmente não admite sua dependência química, achando sempre que pode parar quando quiser. E há obstáculos também em se identificar um alcoólatra pelo fato de a bebida ser aceita socialmente. Mesmo assim, existem 12 questões formuladas pelos Alcoólicos Anônimos que podem levar ao diagnóstico do problema. Se quatro ou mais respostas forem positivas, há grande possibilidade do indivíduo estar dependente do álcool.

São as seguintes perguntas:

1- Já tentou parar de beber por uma semana ou mais sem conseguir?

2- Ressente-se dos conselhos daqueles que tentam fazê-lo parar de beber?

3- Já tentou controlar sua tendência a beber demais trocando uma bebida por outra?

4- Tomou algum trago pela manhã nos últimos tempos?

5- Inveja aqueles que bebem sem criar transtornos?

6- Seu problema com a bebida vem se tornando cada vez mais sério nos últimos 12 meses?

7- A bebida já causou incidentes em casa?

8- Nas reuniões sociais em que a bebida é limitada você tenta conseguir doses extras?

9- Você afirma que bebe e pára quando quer, apesar de provas em contrário?

10- Faltou ao trabalho nos últimos 12 meses por causa da bebida?

11- Já sofreu “apagamentos” depois de uma bebedeira?

12- Já pensou que poderia aproveitar melhor a vida se não bebesse?

Onde procurar ajuda para o tratamento

Existem instituições públicas que podem atender gratuitamente o alcoólatra, seja ele adolescente ou adulto. Em Curitiba é possível conseguir internamentos pelo Sistema Único de Saúde(SUS) nos hospitais Pinel, Bom Retiro e Nossa Senhora da Luz. Existem alguns hospitais da Região Metropolitana que também podem ser procurados. Para tratar do problema, a psiquiatra Ângela Monteiro orienta os pais, familiares e amigos para que conversem com o alcoólatra no momento em que ele esteja sem o efeito da bebida e que tentem demonstrar o mal que ele está fazendo para si e para os outros. Também, segundo ela, é importante buscar ajuda especializada, até do médico da família se houver um, para ajudar o dependente químico. “E precisamos ainda acabar com a glamourização e a banalização do álcool para diminuir o número de vítimas”, diz ela.

Os Alcoólicos Anônimos (AA), uma instituição que existe há 60 anos, também promove ajuda a quem sofre com o problema, mantendo reuniões semanais em vários pontos da cidade. Existem também grupos do AA que atendem as famílias de alcoolistas e todo o auxílio é gratuito. (MC)

Saíndo do “fundo do poço”

R. tem 26 anos, é universitário e ex-alcoólatra. Ele está sem beber há três anos, depois de viver uma adolescência arredia e infernizante, consumindo bebidas alcoólicas dos 14 aos 23 anos. Começou a beber com amigos, em uma festinha, num clube social de classe média alta. Era tímido e queria ser aceito na turma. Apesar da boa educação que recebeu dos pais e de ter uma vida financeira tranqüila, foi até o “fundo do poço” e transformou-se em alvo de sofrimento para a família e de chacotas para os amigos.

Numa conversa franca, R. contou seu drama e seu renascimento. Hoje ele ajuda outros dependentes do álcool como voluntário e se sente feliz. “Cada dia é um novo desafio. Sei que sou uma pessoa doente e não posso beber”, explica o rapaz, que brinda com água e refrigerante cada dia de vitória.

Depois de se acostumar a beber e ainda sem admitir que era um alcoólatra, R. parou de estudar, perdeu a namorada, bateu o carro, os amigos passaram a evitá-lo e sua auto-estima desmoronou. “Chegou uma época da minha vida que eu sequer tomava banho. Dormia e acordava com a mesma roupa e minha meta diária era conseguir R$ 3,00 para comprar três doses de cachaça. Já de manhã ia para o bar e ao longo do dia não sabia mais o que estava fazendo”, diz ele, lembrando ainda que sua família se desestabilizou, brigava com os pais e irmãos e passou a viver em depressão. “Eu bebia por qualquer motivo, fosse ele bom ou ruim”, recorda.

Depois de pagar muitos “micos” e se sentir cada vez mais só, R. tomou consciência da própria destruição quando, depois de ser expulso de uma boate onde estavam seus amigos, ficou sem o relógio e a carteira de identidade – deixados para pagar a conta de alguns copos que quebrou por estar bêbado – e dormiu no banco de uma praça. “Eu não conseguia sequer chegar em casa. Ao deitar no banco caí e me machuquei. Alguém me acudiu e me levou embora”, recorda. Naquele dia, ao chegar em casa, R. foi recebido pelo pai, que o alertou para a sua doença. “Ele não brigou comigo como costumava fazer. Disse que me entendia porque eu tinha um problema de saúde.”

Na manhã seguinte R. olhou-se no espelho e se sentiu um “traste”. Então resolveu procurar ajuda médica e foi internado em uma clínica. Trinta dias depois estava desintoxicado e nunca mais voltou a beber. “Não estou curado, apenas controlo minha doença”, salienta. (MC)

Voltar ao topo