Uma crítica ao ensino jurídico no Brasil

Afinal, os mais atentos (ao fim da coluna) poderiam se perguntar: o que estaria um acadêmico discursando sobre o ensino jurídico? Respondo-lhes de pronto que se não fossem as vozes eternamente discordantes da juventude estaríamos ainda lascando pedras em algum lugar da África. Tomo liberdade para me expressar, sem deixar de lado a propriedade e as razões últimas.

Ninguém discute a importância dos manuais no ensino universitário, em especial, no ensino do Direito. Eles se desenvolveram e se multiplicaram (em qualidade e quantidade) juntamente com a demanda do ensino jurídico na última década. Seus objetivos são nobres, consistindo no facilitar a entrada do estudante no “mundo jurídico”. E diante da propedêutica inexistente na maioria das obras ancestrais, podemos afirmar que eles são um grande avanço. Porém, basta listarmos algumas das características que os especialistas em educação exigem das obras de tal natureza, para que iniciemos um intrigante questionamento sobre seu uso exclusivo em nossas salas de aula.

A grande impressão é que as obras disponíveis, em sua grande maioria, entregam apenas um pacote de informações, sem se preocupar com a “digestão” delas. De cara, desestimulam o prazer na leitura, a criatividade, o questionamento e a curiosidade. Como desenvolver a ciência as obras mais lidas não produzem pensadores?

Para piorar, o Manual impera absoluto no procedimento de ensino da maioria das universidades; esquecem-se os mestres de que o livro propedêutico deve servir apenas para o direcionamento do professor; ele jamais pode deixar de fluir, durante as explanações, o “Aqui /Agora/Hoje” estar dentro do contexto do dia é imprescindível e ele deve deixar que isto influa na sua aula; se há um acidente grave ou questões sendo debatidas nas ruas, os mestres não podem ignora-las em detrimento do Manual.

Os jesuítas já afirmavam e demonstraram a importância da contextualização; aliás, quantos professores buscaram explicar a contradição jurídica entre a impossibilidade dos consumidores cobrarem na Justiça os prejuízos oriundos do racionamento e a MP que estipula o “seguro-apagão” em favor das empresas de energia elétrica? Em compensação perversa, quantos estão neste momento lecionando, durante duas horas (ininterruptas e intermináveis) a enfiteuse? Não temos a impressão de que algo está fora de ordem e que no ensino jurídico há um lapso com o concreto, com o palpável?

Pobres de espírito seríamos nós se jogássemos a culpa exclusiva desta realidade em cima dos editores, dos autores e dos professores. O ensino jurídico é apenas reflexo da educação brasileira, que desde os primórdios da história sempre privilegiou a formação técnica em detrimento da ideológica. Tal sistema de ensino tende a tornar estudantes de Direito excelentes monges copistas e suas escolas em centro de formação de funcionários públicos.

Questiono-me se dentro desta perspectiva há espaço para o desenvolvimento do cidadão que vai lidar com problemas reais de ordem ética da vida árdua do foro. Os artigos e os doutrinadores não são capazes de ensinar tudo, e disso todos sabemos.

Eugen Ehrlich acertadamente afirmou que o Direito é um objeto muito mais amplo do que a simples dogmática. Já está na hora de tentarmos mudar o ensino jurídico. Devemos nos tornar cientes de seus problemas e enfrenta-los. O primeiro passo consiste em nos indagar, como estudantes, do que queremos das nossas classes e salas de aula neste século que se inicia.

Observamos que há, diante das crises de corrupção judiciária, dos inúmeros processos nos Conselhos de Ética da OAB e da problemática do Acesso à Justiça, urgência em se romper a idéia do Manual como centro das aulas e do direcionamento exclusivo do ensino jurídico. A formação do homo juridicus, considerado num todo racional-espiritual-emocional, deve ser o principal fim do ensino jurídico, para que superemos, em longo prazo, os problemas concretos que atingem verdadeiramente todos os operadores e a sociedade onde atuam.

Para que trilhemos os nossos caminhos livremente, carecemos primordialmente de conhecimento ideológico, pois não há apenas um caminho a ser percorrido nas Ciências Jurídicas. É mistér ungir o estudante de um forte substrato humanista, pois quando as teorias do direito são ensinadas de modo massificado, e a lida Justiça passa a ser um negócio, e não uma vovação, passamos a professar muito da ideologia que deu origem às duas grandes guerras.

Devemos admitir, contudo, que os manuais, por muita vez, são um mal necessário. Não obstante, pesando a relação custo/benefício de seu uso, não podemos nos olvidar dos efeitos nefastos da sua cultura para o ensino do Direito por ser ela altamente assimétrica (relação professor versus aluno desigual, fruto da visão do mestre onipotente), imediatista (resultados rápidos pra prova do bimestre e não pra vida) e conservadora (impõe maus hábitos, inibindo a função lógico-reflexiva).

Pesemos, pois, na balança invisível existente nas milhares de classes de direito deste País o ser humano e o ser proficiente, de modo que ela penda para a Justiça.

Raphael Anderson Luque

é acadêmico do 4.º ano do Curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá – PR. : raphael.luque@bol.com.br

Voltar ao topo