Teresa Arruda Alvim Wambier

Um novo Código de Processo Civil

Tem-me perguntado com frequência se a Comissão nomeada em 14 de outubro de 2009, pelo Presidente do Senado, para redigir um projeto de lei para um novo CPC está mesmo pensando num Código novo, ou em consertar o que está em vigor.

Essa talvez seja a indagação constante, que às vezes é formulada de outras maneiras, como, por exemplo, a que indaga a respeito de eventual diminuição do número de recursos, que demonstra também preocupação com uma eventual substituição de paradigmas, ou seja, preferência pela celeridade e não pela segurança que deve decorrer do serviço jurisdicional.

Esta pergunta pode ser respondida de diversas maneiras. Acredito que o direito não comporta mudanças radicais e bruscas. E isto ocorre, porque se trata de um produto cultural e a cultura dos povos se modifica aos poucos.

A mudança da lei não altera a base cultural de uma Nação. Não se trata, portanto, de uma revolução(1). Não há, subjacentemente ao projeto que se está redigindo, uma linha teórica nova, original.

Disse um juiz inglês, acerca do fracasso que, segundo alguns, teria sido o CPC de 1998, que implantar aquele Código na Inglaterra equivaleu a determinar, de repente, que a seleção de futebol inglesa passasse a jogar basquete.

Então, sob este aspecto, não seria mesmo uma grande novidade este novo Código. Simplesmente porque em direito não deve haver grandes novidades! O direito é operado por seres humanos e as grandes novidades teóricas se frustram, se os seres humanos não são treinados para realizar esta linha no plano empírico.

Mas em que consiste este treino? Não, não me refiro aqui à possibilidade de se redigir um novo CPC com uma imensa vacatio legis, para que juízes, advogados, promotores etc. “treinem” suas funções à luz das novas regras. Não é isso.

É que, de certo modo, as mudanças que vai haver já estavam “embutidas” no presente: são resultado de críticas, queixas, necessidades. E são, sobretudo, fruto de um quase consenso na comunidade jurídica.

Vamos a um exemplo. Parece evidente que, sendo o processo civil, sob certo aspecto, um método, não pode converter-se em objeto central da atenção dos magistrados.

É uma deformação discutirem-se, num processo, com mais intensidade, questões processuais do que o mérito. É consenso que o trato da forma não deve sobrepujar o cuidado com o conteúdo.

É comum dizer-se que o processo, depois destas minirreformas capitaneadas por Athos Gusmão Carneiro e Sálvio de Figueiredo Teixeira, tornou-se complexo. Muitas destas minirreformas foram extremamente boas e oportunas.

Um grupo qualificadíssimo de processualistas, capitaneado pelos processualistas antes mencionados, por Sálvio de Figueiredo Teixeira e Athos Gusmão Carneiro, esteve à testa deste movimento muitos dos projetos nasceram no Instituto Brasileiro de Direito Processual e todos foram discutidos exaustivamente e juristas dos mais ilustres, do porte de Ada Pellegrini Grinover, participaram ativamente destas discussões.

Introduziu-se no CPC a antecipação e tutela, a ação monitória, alterou-se o regime do agravo, e a reforma veio caminhando até a Emenda 45/2004. Nosso sistema ganhou, a sociedade ganhou e não se quer, de modo algum, retroceder. Mas o quanto não choca um leigo ouvir a afirmação de que o processo é complexo? De que o fulano tinha razão, mas perdeu a causa por razões processuais?

Então, um dos objetivos deste novo código é o de inverter esta escala de valores: relevante deve ser o mérito, não o processo. Portanto, este tem que ser, necessariamente, e drasticamente, simplificado. Com certeza, não há discordância no que tange a esta necessidade.

Assim, e por isso, é que se propõe a unificação dos prazos recursais(2). Pelas mesmas razões, propõe-se a extinção do agravo retido, cuja função é a de evitar preclusões. Paralelamente à extinção deste recurso, altera-se o regime das preclusões!

Outro exemplo: o fato de haver jurisprudência indefinidamente conflitante entre os Tribunais brasileiros, havendo fundas divergências até mesmo interna corporis, nos Tribunais, entre Câmaras ou Turmas(3), é fenômeno que atordoa o jurisdicionado e contribui decisivamente para a insegurança jurídica e para com a proliferação desmedida de recursos.

Portanto, é de senso comum que se devem incluir no novo CPC medidas estimuladoras da estabilidade da jurisprudência. Assim também como dispositivos que valorizam os precedentes dos Tribunais Superiores.

Cria-se um ambiente de segurança, previsibilidade, respeitando-se, sobretudo, o princípio da isonomia. Esta já é uma tendência visível nesta última fase da reforma do sistema processual. Basta pensarmos na súmula vinculante e nos arts. 543 B e C.

Veja-se um outro ponto: há muito tempo a doutrina se queixa da ausência de uma parte geral no CPC vigente. Não é natural que uma das mudanças que deve haver do CPC em vigor para o projeto é que, no novo CPC, haja uma parte geral?

Duas observações a título conclusivo: nos países latinos, quer-se criar um sistema, coerente, uno etc… e se teoriza, se escrevem tratados e mais tratados. Nos países anglo saxônicos, pretende-se, pura e simplesmente, resolver problemas. A teorização vem depois.

Nos países da common law há tendência diametralmente oposta, ou seja, há o enxugamento do corpo de leis, em favor de maior racionalidade e simplicidade na concepção e gerenciamento do sistema jurisdicional. E as coisas parecem funcionar relativamente bem nestes países.

Será que não teria chegado a hora, também no Brasil, de haver menos tratados e mais soluções práticas? Menos discurso e mais ação? Talvez a grande novidade resida exata e precisamente nisso. Um novo CPC feito com base fundamentalmente nos problemas a serem resolvidos.

Por outro lado, os problemas do processo civil brasileiro não emergem só da lei, mas também da lei. Mas a alteração da lei, por si só, não é milagrosa. A lei gera melhoras nos resultados na exata medida em que era ela a responsável pelo problema.

Desta medida não podemos nos esquecer. Nesse sentido, um novo CPC jamais poderá ser aguardado como a solução milagrosa das inúmeras questões que nos preocupam há muito tempo.

Ele será, sim, se bem feito, bem compreendido e bem aplicado, um dos muitos meios voltados a pavimentar uma via de acesso segura a um modelo mais eficiente de prestação jurisdicional. Milagres são operados por seres humanos, não pela lei.

Notas:

(1) Penso que o direito deva, sim, ser veiculado de uma revolução, se for criado, por exemplo, numa fase pós ditadura. Haveria de ser revolucionário, é claro, o direito criado na Alemanha, posteriormente ao regime de Hitler. Mas não em tempos de evolução natural das sociedades.

(2) Nem se diga que porque alguns prazos foram estendidos o objetivo de tornar o processo mais célere estaria comprometido. A morosidade que nos aflige é de anos e décadas!

Não de dias! Além do mais, a grande demora no processo não está no seu tempo “útil”, isto é, nos prazos para manifestações e prática de atos processuais. Sabemos todos que, por razões culturais que vêm de muito longe, o grande problema é a burocracia que o envolve.

São os chamados tempos mortos do processo, isto é, períodos em que o processo jaz nas prateleiras, sem que qualquer atividade voltada ao seu impulsionamento ocorra.

(3) Este fenômeno talvez decorra de outros, de natureza cultural e histórica. É comum a insurgência de Tribunais estaduais, por exemplo, à orientação do STF ou do STJ, como se, manifestar discordância, significasse uma demonstração de independência política.

Há também a questão ligada ao ímpeto do ser humano no sentido de deixar a sua marca pessoal nas instituições pelas quais passa, ainda que disso possa resultar algum tipo de insegurança jurídica ou social.

Teresa Arruda Alvim Wambier. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC-SP. Professora nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da mesma instituição. Professora no curso de mestrado da Unipar. Presidente do IBDP. Membro da International Association of Procedural Law, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, do Instituto Panamericano de Derecho Procesal, da International Bar Association, da Academia de Letras Jurídicas do Paraná e São Paulo, do IAPR e do IASP, da AASP, do IBDFAM. Relatora Geral da Comissão de Juristas, nomeada pelo Senado, para a elaboração de um novo CPC. Advogada.

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