Tolerante demais

Parte do conhecido deputado Roberto Freire – quem diria! – uma das mais sérias advertências já feitas ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva na questão dos conflitos agrários que pipocam no Brasil de Norte a Sul. Segundo Freire, que esteve em Curitiba recentemente, o governo de Lula está sendo tolerante demais com os excessos praticados pelos sem-terra, levados por suas lideranças a invadir fazendas produtivas, prédios publicos, praças de pedágio e, não bastasse isso, a assaltar caminhões carregados de mercadorias como fazem assaltantes comuns.

O MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, conforme observou o deputado, é aceitável quando ocupa propriedade não produtiva. Isso – que já se perde na história do movimento – funciona como uma “forma de luta para tentar fazer com que produza”. Mas – segundo aduz – ocupar praças de pedágio é uma exorbitância, não corresponde a seus objetivos. Nem alguém pensar que pode invadir um prédio público onde tem pesquisa e tocar fogo, só porque é contra o transgênico”.

As declarações de Freire foram feitas dias depois de o presidente Lula vestir, em palácio, o boné do MST – um gesto aparentemente inócuo e brincalhão, mas eivado de um simbolismo muito forte. Lula sabia que os sem-terra haviam prometido continuar invadindo, já não para protestar contra o governo, mas para “ajudá-lo”. No quê? Esta pergunta, de óbvia resposta, também não foi feita e tanta imparcialicade é prejudicial à imagem presidencial que precisa ser, o quanto mais possível, imparcial.

Não foi por outra razão que os mais altos representantes do outro lado do conflito – a União Democrática Ruralista (UDR) – preferiram outro caminho, aparentemente mais neutro, para a exposição de suas razões. Foram bater às portas do Supremo Tribunal Federal, numa histórica audiência com o presidente ministro Maurício Corrêa, que se diz amplamente favorável à reforma agrária. Em que pese a tergiversação do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, para quem “recorrer à Justiça é uma maneira civilizada e a única maneira de compor os conflitos”, a escolha dos proprietários rurais para expor seus problemas tem motivações que vão além dessa visão: o Presidente da República veste o boné do MST e, assim, deixa de ser um interlocutor confiável.

A voz de Maurício Corrêa pode não ser tão agradável aos invasores quanto a de Lula, mas é uma voz que inspira um pouco mais de garantia da ordem: “Enquanto estivermos no regime constitucional em que vivemos – disse o ministro – a propriedade deve ser respeitada, evidentemente com aqueles limites previstos na própria Constituição”. Era isso, aliás, que o presidente Lula devia ter dito aos “companheiros” que lhe levaram, além do boné, uma bola e doces, que também foram compartilhados no início da longa audiência. As brincadeiras até poderiam ter acontecido do mesmo jeito. Mas, infelizmente, faltou a segunda parte.

E é exatamente essa segunda parte faltante que serve de ânimo maior aos que defendem a reforma agrária “na lei ou na marra”. Roberto Freire observou muito bem que essa tese já era defendida pelas Ligas Camponesas na década de 60. “Velho comunista que sou – lembrou ele – já considerava que essa escolha de invadir ou reagir na marra não fazia bem ao processo democrático. Alguém já disse que isso é um filme antigo e, o que é pior, a gente morre no final.”

Resta saber como o presidente Lula, lá no íntimo, está vendo essa oportunidade perdida – ou, melhor, essa desconfiança ingenuamente assumida. Se todos quantos se sentirem preteridos pelas preferências do chefe supremo da nação enveredarem pelo caminho da UDR, teremos fila diante do STF. E lá estariam, além dos magistrados inconformados com a reforma da Previdência, os funcionários públicos também incomodados pelo fraco reajuste salarial, os professores, os empresários entristecidos com a CPMF permanente, os famintos todos em compasso de espera, os desempregados à cata dos dez milhões de vagas prometidas… Lula pode ser extremamente sincero, mas sua sinceridade não pode ser confundida, nunca, com a tolerância do antigo discurso.

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