Terror penal

Quer-se neutralizar os que lutam pela reforma agrária

Em 2001, ao julgar a apelação criminal 272.550-3/0-Andradina, o Tribunal de Justiça de São Paulo, em acórdão relatado pelo desembargador Dante Busana (1), elaborou um silogismo bastante instrutivo que podemos resumir nos seguintes traços:

a) “Para a configuração do crime de quadrilha é indispensável a associação de mais de três pessoas para o fim de cometer crimes”, ou seja, “é preciso que o acordo verse sobre uma duradoura atuação em comum, no sentido da prática de crimes”;

b) “A invasão de propriedades rurais com a finalidade, ou sob o pretexto, de pressionar as autoridades a dinamizar a reforma agrária (Á) não configura o delito de esbulho possessório, porque ausente o elemento subjetivo do tipo”.

No entanto, na primeira instância, sentenças vem sendo proferidas para mandar prender dirigentes do Movimento dos Sem Terra com base nesta tipificação. Sucedem-se as ordens de prisão contra muitas pessoas e, talvez, o mais chocante seja ver uma mulher corajosa pagar o preço de suas lutas trancafiada no frio gelado do cárcere. Arrancada de perto dos seus filhos, simplesmente por lutar pela reforma agrária, ou seja, para que uma parte dos excluídos deste País consiga um modo de obter o seu sustento.

Por que ela apresenta tanto perigo para a sociedade que é preciso levá-la para a cadeia? Não é acusada de haver cometido assassinato, seqüestro-relâmpago ou algum outro tipo de crime hediondo. Como se viu acima, ela não cometeu crime algum.

A verdade está naquele acórdão supracitado e, prosseguindo na leitura do mesmo, vamos encontrar outras lições, agregadas pelo voto do desembargador Limongi França: “O tipo penal exige que a associação tenha por finalidade o cometimento de crimes e, na universalidade ou pluralidade de pessoas que compõem o Movimento dos Sem Terra, falta o elemento subjetivo do tipo, a vontade de associar-se para praticar delitos.”

Por este motivo, ele conclui: “Constitui-se, aliás, imperdoável erro científico analisar o Movimento dos Sem Terra pela ótica penal, ao invés de fazê-lo sob o enfoque social”.

Parece tão óbvio que não há crime mas, nessa madrugada em que escrevo, uma jovem mãe chamada Diolinda Alves Souza está no cárcere. E o juiz afirma que ao separá-la de seus filhos, limitou-se a “cumprir a lei”. O povo ficará intrigado para tentar entender qual é a lei: aquela descrita no acórdão acima, ou esta que o juiz diz que cumpriu?

Bem se percebe como o juiz assume a justificativa da legalidade, vestindo uma roupagem que esconde ao povo a intenção de neutralizar os excluídos. O que se trava é uma dura batalha para neutralizar os que lutam pela reforma agrária, apresentada à população sob a falsa imagem do respeito severo à norma legal. A norma, contudo, está muito longe disso tudo, e repousa pacífica e discretamente numa recôndita folha de papel. Ela só se torna instrumento para a liberdade ou para a opressão quando o Judiciário a interpreta e aplica a um caso concreto.

Ao dizer que “cumpriu a lei”, o julgador se apodera de algo amorfo escrito nos livros e lhe confere o significado inscrito na sua visão ideológica pessoal, em seus ódios e paixões. Esta marca do turbilhão de sentimentos que anima a sentença, revela-se principalmente no detalhe de que ela não permitiu aos sem-terra o direito de recorrer em liberdade. Como regra geral, este direito é assegurado a todos mas, eles foram presos rapidamente, antes que pudessem se insurgir contra tal privação.

Por que a pressa? Afinal de contas, veja-se o que diz o Superior Tribunal de Justiça a respeito da prisão preventiva de dirigentes do MST (2): “A prisão processual, medida extrema que implica sacrifício à liberdade individual, deve ser concebida com cautela em face do princípio constitucional da presunção de inocência, somente cabível quando presentes razões objetivas, indicativas de atos concretos, susceptíveis de causar prejuízo à ordem pública, à instrução criminal e à aplicação da lei penal (CPP, art. 315; CF, art. 93,IX). A manutenção de líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST – sob custódia processual, sob a acusação de formação de quadrilha, desobediência e esbulho possessório afronta o preceito inscrito no art. 5º, LXVI, da Constituição”.

O punho de ferro que está enviando esta mulher para sua descida ao inferno é entrevisto com clareza pela cidadania. O terror penal se exibe com crueza, mostrando à opinião pública uma de suas faces mais horrendas: aquela que serve a colocar o Estado na função de reprimir os excluídos. Enquanto perdurar este monstruoso paradoxo que colocou Diolinda na cadeia, os cidadãos vão se lembrar desta brutalidade no mais frio de cada madrugada.

Esperemos que não demore para que nossos tribunais socorram o seu povo fazendo cessar esta violência em tempo hábil, inclusive, para impedir que as outras vítimas arroladas na sentença tenham que descer a este mesmo inferno. É preciso fazer parar a marcha deste paradoxo perverso e esclarecer o povo quanto à arma escondida nas mãos daqueles que invocam o cumprimento da lei para cometer injustiças tão aberrantes e trágicas.

Notas:

(1)http://webmail.aasp.org.br/

(2) http://www.stj.gov.br/webstj/ (HC 9896 Relat Ministro Vicente Leal)

João José Sady

é advogado, mestre e doutor em Direito da Relações Sociais pela PUC-SP, professor no curso de Direito da Universidade de São Francisco, em São Paulo, e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP.

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