Spolium memorabile monstri

Uma coisa é atirar pedra na vidraça, outra consertar a vitrine. A dedução lógica que se faz é que quem critica tem o remédio, o antídoto para o problema que aponta. Mesmo que o mal seja crônico, o remédio ousado e o convite irresistível: “Não tenha medo de ser feliz”. Governar não é fácil. Mas é preciso um rumo, um projeto. Vladimir Ilitch Ulianov tinha um. Ele disse certa vez, na Rússia, que recuava um passo para em seguida dar dois à frente. Pode ter sido mera retórica, mas ele tinha um plano.

Este talvez seja o primeiro grande problema de Lula e seu governo. A impressão mais forte que se passa nessas primeiras semanas é a de que não há um plano, um projeto na gaveta. É dormir hoje para ver o que acontece amanhã. Lula parece levar para a política a fórmula de Glauber Rocha no cinema: um partido na mão e um governo na cabeça. E dá-lhe retórica. A retórica, o excesso de palavrórios, quando não acompanhada de ações conduz ao descrédito. Lula assumiu com um enorme patrimônio de credibilidade. Está gastando rapidamente.

Na área internacional, por indelicadeza, saiu dizendo que o Brasil deve ser líder da América Latina. É algo que, ainda que se pense e se trabalhe ao longo das décadas nessa direção, não se fala. Por uma razão simples: melindra e cria resistência nos eventuais liderados. Ou seja, não é eficiente. O primeiro caso foi a Venezuela. O governo se assanhou, tomou partido de um dos lados, justamente em um país que é tradicional aliado brasileiro. Foi um erro. Se o outro lado vence, mesmo que não seja o preferido de Lula, a Venezuela vira as costas ao Brasil.

Agora é a Colômbia que ontem criticou o novo governo brasileiro por não condenar a guerrilha daquele país, sugerindo que o Brasil, assim, não é imparcial para entrar no assunto. Pode até ter dedo dos EUA nesta inesperada declaração da Colômbia. Mas, ao Brasil de Lula está faltando habilidade. No que se refere à guerra no Iraque, a posição é correta. Neste caso, a França, com voto no Conselho de Segurança da ONU, é quem faz o jogo. O Brasil apenas segue.

Na economia é que nosso dia-a-dia está em perigo. Vamos até considerar como baboseira de campanha a promessa de novos empregos, feita por todo mundo. E também dar um desconto: a situação já estava feia antes de Lula assumir. Ele não pode, entretanto, ficar os próximos quatro anos dizendo que ela estava feia e não apresentar nada. Deve haver um rumo, conduzir o País a um porto seguro. As recentes decisões conduzem o País na direção de um sufoco econômico. Em outubro passado, a taxa de juros estava em 18% ao ano. Agora, 26,5%. Controlar a inflação é uma coisa, criar recessão, outra. A Argentina teve um presidente que não sabia aonde ir. Acabou indo para casa.

Vamos raciocinar: fosse outro governo, Lula seria o primeiro a criticar as recentes medidas econômicas. Ele defende a estabilidade a um custo contra o qual ele mesmo foi um dos maiores críticos. O argumento que usava no passado se volta agora contra ele. Se a estabilidade é um patrimônio, porque em uma economia estável há uma atmosfera mais saudável para a sociedade, é de se indagar o preço que se deve pagar para mantê-la. No entanto, Lula deve aplicar o seu projeto, se é que o tem, e não usar como seu o espólio de um monstro que condenou.

Edilson Pereira

(edilsonpereira@pron.com.br) é editor em O Estado.

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