Sistema jurídico penal e futebol: reflexões sobre a pedofilia

Cientes de que falar sobre direito penal é desafio que exige linguagem própria (vez que entendemos o direito como ciência), e certos de que pela multitude de teorias que se espraiam pela doutrina, possa induzir ao fato de que a filiação a qualquer uma delas implique em coerência sistemática inafastável, limitada pelos próprios contornos de cada qual, nos encontramos frente a desafio adicional. Primeiro porque a intenção neste momento não é fazer um trabalho puramente científico direcionado exclusivamente ao mundo jurídico, mas acessível a todo e qualquer cidadão que possa se interessar pelo tema. Também não pretendemos defender uma ou outra teoria criminal, e sim abordar o direito penal atentando para o fato de “ser dotado de princípios vivos condicionados em sua finalidade prática, interpretados em seu sentido social e humano”, como dizia HUNGRIA, sem no entanto perder de vista o princípio da legalidade.

Foi por estas razões que para desenvolver algumas reflexões sobre a pedofilia, resolvemos permear no texto considerações sobre futebol e sistema penal.

Ao analisarmos o produto dos meios de comunicação (formadores de opinião e entes de controle social informal), podemos de pronto verificar que não faltará jamais em seu conteúdo, nem o gramado, nem alusão a assuntos “policialescos”.

Desta assertiva podemos extrair várias conclusões, das quais elencamos algumas: 1) A paixão de nós brasileiros pelo futebol, visto que se assim não o fosse, não serviria a vender notícias; 2) a paixão que temos pela desgraça alheia, (quem sabe até para amenizar a nossa própria!) sempre acompanhada da curiosidade (por vezes mórbida) sobre o crime, suas circunstâncias, vítimas, autores e resultados; 3) Trazemos resquícios inquisitórios, que se encontram arraigados em nossos inconscientes, pois investigamos, acusamos e julgamos, não só casos policiais a nós trazidos diariamente pela mídia, como também jogadores e técnicos, suas estratégias, derrotas e vitórias futebolísticas, veiculadas no mesmo instrumento e com a mesma freqüência; 4) Quando realizamos este nosso julgamento inquisitório (ainda bem que não é auto-executável) ousamos propor de imediato ora a troca do técnico, ora a venda (as vezes até doação) do jogador que perdeu “aquele” gol, o banimento do juiz que não soube apitar o jogo, e com a mesma facilidade, pedimos, exigindo, também a imediata prisão, de preferência perpétua, do pretenso autor de um daqueles crimes graves (conforme publicados) que tanto ajudam a vender jornais; 5) O julgamento (pelo judiciário) deste indigitado facínora acaba sendo algo de somenos importância, isto porque do seu julgamento talvez só saibamos se ele for absolvido, pois o juiz terá entendido de forma contrária à nossa, ou ainda se a pena, como havíamos vaticinado, for estratosférica: 6) Por fim (ainda que pudéssemos nos alongar) temos de concluir que somos excelentes técnicos de futebol (Felipão e Romário que o digam) bem como infalíveis e inflexíveis juízes (inquisidores).

É realmente muito mais fácil indicar o Romário a ir para a Copa do Mundo, sem ter de assumir a responsabilidade de convocá-lo a integrar o selecionado brasileiro ou de explicar as razões de não tê-lo feito. Como também é muito mais fácil (e cômodo) pressionar a que se inche ainda mais a população carcerária, pois não temos, enquanto apaixonados e infalíveis que somos, a pérfida missão (agora do falível Estado), de nos preocuparmos com a alimentação, higiene, saúde, dignidade, recuperação, instalação e segurança de presos. Peço perdão pelo tom sarcástico, mas esta situação dantesca está presente constantemente em nosso dia a dia, e por passar despercebida ou por ser entendida como normal, causa-nos certo desconforto e desagrado incamuflável.

Mas o que isto tem a ver com a pedofilia? Seria o tino policial ou o gramado?

Esta semana tivemos dois casos de prisões de grupos que em tese tiravam seu sustento de atividades pedófilas (vendiam cenas de crianças e adolescentes fazendo sexo). Um em São Paulo e o outro em Curitiba. Ambos os casos tiveram repercussão nacional proporcionada pela mídia (muitas vezes ávida de escândalos para rechear suas manchetes).

A indignação que não poderia deixar de nos invadir com a paixão justificada que o caso reclama, em segundos se tornou aquela paixão desordenada da qual nos referimos anteriormente. Acirraram-se os ânimos e novamente se pôde ouvir a atualidade de temas como prostituição infantil, dinheiro sujo, pena de morte, prisão perpétua, pena de castração, todas elas direcionadas aos produtores de tais cenas, que eram vendidas depois de gravadas, a clientes “especiais”, inescrupulosos e de gosto questionável.

Salientamos que os delitos apurados em Curitiba, o foram por terem em tese os seus autores infringido o disposto no artigo 241 da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) assim descrito: “fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornografia envolvendo criança ou adolescente”, com pena, em abstrato prevista, de reclusão de um a quatro anos. Naquela oportunidade foram encontradas cenas (cerca de 30 mil) que seriam (eram) gravadas em CD’s (a serem revendidos), de causar náusea nas pessoas mais insensíveis.

As atenções, no entanto, foram direcionadas para os em tese autores do delito acima transcrito. Foi a eles que se direcionou todo o desprezo possível (o que parece natural), bem como, foram eles “objeto” (enquanto participantes de nosso sistema inquisitório mental) das penas aflitivas que mais acima elencamos. Isto nada mais é do que reflexo da crise do sistema penal, que desacreditado está pela ineficiência sentida pela população (NILO BATISTA), como pela sensação de insegurança (D’URSO) e seletividade (HULSMAN) que nele se criam. Acredito que muitos de nós apaixonados, devem estar pensando ser pouco a pena de reclusão de no máximo quatro anos, para delito que atinge valores sociais tão importantes. E é realmente este o clima que propicia o crescimento de movimentos como o “Lei e Ordem”, que propugnam pelo recrudescimento do sistema penal (João Marcelo de Araújo Junior), sem pensar no depois, a exemplo, em como administrar o sistema prisional que ficará ainda mais superlotado. E aos que assim pensam, o que os conforta é a idéia de que tais seres teratológicos já estão presos.

Mas quantos de nós pensamos na reprovabilidade da conduta dos “clientes especiais”, que compraram os CD’s com as cenas pedófilas? Imoral? Por certo, mas qual a lei aplicável? Teria sua conduta dignidade penal, ou nosso legislador teria esquecido de penalizar também esta conduta? Será preciso mobilização nacional, campanhas mediatizadas, como tem sido a regra, para que o legislador, agora em época de eleição não só aumente a pena prevista no artigo 241 citado (como disse LUIZ FLAVIO GOMES), como também prescreva pena mais severa para os adquirentes do “produto”? Não seria crime hediondo?

Será necessário movimentar o legislativo para que dê resposta rápida à sociedade? E assim agindo, na forma descrita pelo ilustre LUIZ F. GOMES, correrá o risco de regular o já regulado (AMBOS), incorrendo em inconstitucionalidade por ferir a coerência sistemática penal (GARCES RAMOS), atentando contra a proporcionalidade entre crime e pena, gerando o que o Professor René DOTTI chamou de direito penal do terror? Ou ainda em produzir o que CARRARA chamara de nomorréia penal?

Será que aqueles que, para satisfazer lascívia própria (ou de terceiros) compram tal produto “erótico desviante”, não estariam de qualquer forma contribuindo para a conduta dos que, mediante sacrifício da liberdade sexual de crianças e adolescentes, ganham a vida produzindo tais produtos? Será que esta procura não estaria fomentando a oferta? Ressalte-se que, dos objetos colhidos durante as investigações do caso citado e que se passou em Curitiba, foi apreendida relação de cerca de nomes de pessoas que seriam “clientes” do grupo.

Este questionamento quanto à tipicidade aparente foi feito já no inquérito policial, para fins de verificação de justificativa de indiciamento, se fosse o caso. A resposta não foi imediata nem óbvia. Seja pela novidade do tema, seja pela inusitada posição do consumidor desta “conveniência de dar medo em Eros”.

Por fim da análise do caso prático, concluiu-se na esfera de polícia judiciária, que a Lei, SMJ, já apresentava solução. Não seria pois necessário buscar os demais apaixonados a fazer coro, frente ao Congresso Nacional, solicitando a criação de um “Novo Delito”, para lembrar CARRARA.

Da análise do Código Penal, vê-se que o caput de seu artigo 180 prevê: “Receptação: Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte: Pena- Reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.

Este tipo penal traz um crime comum, ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa. Precisa para tanto que o “cliente especial” realize algum dos verbos (núcleo) do tipo (adquira, receba, transporte, conduza, oculte ou influa para que alguém de boa fé adquira, receba ou oculte) de forma consciente e voluntária. Precisa ainda saber (ter potencial conhecimento) que a coisa adquirida é produto de crime (elemento normativo do tipo). Agora, como dizer que um cidadão normal, de inteligência mediana não sabe que pedofilia é crime, mormente nos dias de hoje, em que a comunicação globalizada tornou o mundo do tamanho da tela de uma televisão? Parece improvável, se não impossível, principalmente pela natureza sócio econômica diferenciada do “cliente especial”.

Pois bem, ainda que possa parecer óbvia a adequação típica da conduta dos “consumidores”, não foi isto que verificamos na prática. A explicação para isto está no fato de que incutida em nosso inconsciente está a idéia de que a receptação só se aplica se o crime anterior for contra o patrimônio, o que se nos parece não ser a melhor interpretação, muito embora sua localização topográfica no Código Penal seja no título “Crimes Contra o Patrimônio”.

Se assim o fosse, por força do princípio da legalidade, estaria escrito no artigo 180 do Código Penal:” …coisa adquirida é produto de crime contra o patrimônio”. Neste sentido se manifesta MIRABETE, havendo também julgados do STJ seguindo a mesma linha de entendimento. Ademais, não se pode acusar a legislação brasileira de ser elaborada com total coerência sistêmica.

Como o direito é vivo, dinâmico e repleto de interpretações nem sempre pacíficas, acreditamos ser ao menos lógico e sustentável o raciocínio acima, o que permite desde já que se combata na esfera policial, não só os “produtores” de imagens de pedofilia, como também os “consumidores” das imagens gravadas em CD’s. Independente da adequação típica que posteriormente possa ser dada pelo Ministério Público, na denúncia, desde logo há supedâneo legal para a realização das tarefas de polícia judiciária, o que resulta por certo em benefício da comunidade que visa proteger.

Poderá porém o autor da conduta descrita no tipo acima sustentar que não houve crime, se provar estar amparado por alguma excludente de antijuridicidade, ou ainda ficar isento de pena, caso prove que não era culpável ao momento da prática do injusto. Deixamos porém de comentar estes dois temas, pois neste momento o que nos interessa é verificar a existência ou não de tipo penal que possibilite a adequação/concreção (REALE) do fato à norma penal. Até porque, isto haverá de ser apreciado quando do julgamento (pelo Estado Juiz), em cada caso prático.

Como no futebol, ainda que imbuídos dos melhores sentimentos, deixemos a análise do cabimento desta teoria (quanto à adequação típica da conduta dos adquirientes das imagens aludidas), para aqueles que ao final têm atribuição legal para decidir. A certeza somente virá, em um ou em outro sentido, após julgamento final da ação penal, tal qual somente saberemos se assiste razão a Felipão ou a Romário, após o último jogo da copa do mundo.

Luís Fernando Viana Artigas Jr é delegado de Polícia adjunto da Delegacia de Crimes Contra a Administração Pública. Pós Graduando em Ciências Penais pela PUC PR. Formado pela Ecole Nationale Superière de la Police (Lyon-França) e pelo United Nations Asia and Far East Institute for Crime Prevention and the Treatment of Offenders (Tókio-Japão)E mail: artigasjr@onda.com.br

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