Sistema Financeiro da Habitação – Contrato de gaveta

A questão relacionada com a admissão dos chamados “contratos de gaveta” firmados entre particulares para aquisição de imóveis através de financiamento pelo Sistema Financeiro da Habitação, em contratos ainda não findos, e sem a anuência dos agentes financeiros, tem gerado enorme controvérsia entre mutuários e bancos, o mesmo ocorrendo na nossa jurisprudência.

Os mutuários advogam a validade destes negócios jurídicos, enquanto as instituições financeiras não os admitem.

Já de início ressaltamos nosso entendimento pela validade destas transações, valendo-nos também dos ensinamentos do Eminente Juiz Federal João Pedro Gebran Neto, que com a sabedoria e conhecimentos que lhe é peculiar, pronunciou-se quanto a dispensabilidade da anuência do agente financeiro como condição de validade da cessão de direitos e obrigações. Verbis: “é momento de se repensar tal entendimento, que se consolida à luz dos princípios do direito privado que incidem nas relações instauradas sob o império da vontade das partes.

É oportuno rever a questão, agora com um novo enfoque, iluminado, desta feita, pelas exigências de interesse social que dão cor ao Sistema Financeiro da Habitação constituído em nosso direito positivo.

É inegável que, numa sociedade que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e como objetivos a construção de uma sociedade justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das igualdades sociais e a promoção do bem de todos os brasileiros, sem preconceitos e discriminações (CF, art. 3º), o programa habitacional deve ganhar posição de destaque na atuação do Estado. Por isso, toda a construção jurídica que dá sustentação ao programa habitacional que trata da casa própria, não tanto como um anseio individual, mas, muito mais, como uma meta de governo, deve ser balizada pelos fundamentos e objetivos do Estado Brasileiro, postos na Constituição.

Desse modo, o financiamento da casa própria, mediante a captação de recursos da poupança popular, ou da aplicação daqueles recursos compulsoriamente depositados pelas empresas nas contas vinculadas do FGTS, é regido por normas de ordem pública que visam garantir que a vontade das partes, principalmente da parte que empresta o dinheiro, não venha comprometer a efetividade da política habitacional. Assim, a ordem jurídica cria para o pretendente da casa própria, que atenda as condições objetivas previstas em lei, o direito de obter o financiamento, que não pode ser recusado pela instituição financeira, a qual se permite captar recursos da poupança popular.

Diante disso, a interpretação das estipulações contratuais que regem o financiamento da casa própria não pode erigir como premissa fundamental o princípio civilista da autonomia das vontades, mas o fundamento básico de direito público, que repousa na vontade da lei. Equivale a dizer que, na aplicação da cláusula contratual que proíbe a cessão de direitos, sob pena de vencimento antecipado da dívida, não se haverá de interpretar literalmente o dispositivo escrito, mas, antes que tudo, haverá de se consultar a vontade da lei, latente no ordenamento jurídico.

Ora, quando todo o aparato jurídico e político do Estado se direcionou no sentido de favorecer e incentivar a aquisição da casa própria, com os recursos captados em todos os segmentos da sociedade, a vontade da lei transparece de maneira evidente, apontando que o agente financeiro, que executa a política habitacional, só pode rescindir o contrato e considerar antecipadamente vencida a dívida se a respectiva cessão, por alguma forma, vier a frustrar os objetivos da referida política. Em outras palavras, se a cessão do contrato satisfazem as exigências legais então vigentes, o agente financeiro não poderá opor-se à alienação, nem à cessão do mútuo, pois, como se disse, não será a sua vontade que deverá ser prestigiada, senão que a vontade da lei.

A obrigatoriedade da interveniência da instituição financeira está ligada à obrigatoriedade do financiamento da casa própria, desde que o pretendente preencha os requisitos legais, e não à vontade discricionária do detentor dos recursos captados da poupança popular e do fundo de garantia. Isso significa, longe de importar em limitação ao direito do pretendente à casa própria, constitui verdadeiro dever que a ordem jurídica impõe ao financiador. É ele obrigado a intervir e anuir na transferência do contrato, desde que Å repita-se Å o cessionário atenda os re-quisitos legais.

A lei prevê que o novo mutuário deverá assumir o saldo contábil, ou seja, o saldo que existe contabilizado, e não o saldo que será recalculado. Além disso, os requisitos legais e regulamentares que deve preencher são aqueles exigidos para financiamento e não aqueles próprios do financiamento.

Não se podem confundir os requisitos que são exigidos para a concessão do financiamento, com as condições do financiamento. Estes não podem ser modificados, sob pena de se desnaturar a cessão, transformando-a em novação.

Por isso, desde que o pretendente à casa própria atenda aos requisitos legais e regulamentares exigidos para a concessão do financiamento, quais sejam a renda mínima, não possuir outro financiamento na mesma localidade, ser capaz, etc., terá direito à cessão, assumindo o saldo contábil, sem nenhuma modificação quanto às condições do financiamento, que serão aqueles mesmos pactuados no contrato transferido.

Ao prever a interveniência obrigatória da instituição financeira na transferência do financiamento, a lei não está conferindo ao agente financeiro o poder arbitrário de proibir a referida transferência, quando queira e por qualquer razão. Ao contrário, a lei, nesse caso, está criando para a instituição financeira a obrigação de intervir na transferência do financiamento, para que garanta o cumprimento dos requisitos legais e regulamentares que regem a concessão do financiamento, e que existem, em última análise, para proteger a poupança popular de especuladores, ou de insolventes. Tem-se aí, não o poder de veto do agente financeiro, mas o dever de anuir na transferência, desde que o pretendente atenda às exigências objetivas da lei.”” (TRF, 4ª Região, Ap. Civ. N.º 2001.04.01.062726-5, j. em 24.10.2002).

Além disso, ressalte-se que a Lei n.º 10.150/2000, em seu artigo 20 autoriza a regularização dos contratos celebrados entre mutuários e adquirentes, até 25.10.96, com exceção daqueles que se enquadram nos planos de reajustamento definidos pela Lei n.º 8.692/93 (contratos protegidos pelo Plano de Comprometimento de Renda).

Ao nosso ver, com exceção daqueles contratos regidos pelo reajustamento das prestações através do Plano de Equivalência Salarial, e que tenham cobertura do FCVS (Fundo de Compensação de Variações Salarias), necessitam de anuência do agente financeiro para transferência, ficando os demais liberados deste encargo, independentemente da data que foram firmados.

Vicente Paula Santos

é advogado de empresas em Curitiba/PR e membro do Instituto dos Advogados do Paraná. E-mail:
vps@jurídicoempresarial.com.br

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