Sistema de cotas para negros. Justiça social ou racismo “do avesso”?

Para Tourtoulon, a justiça perfeita consistiria na igualdade completa de todos os homens. Todos os seres humanos seriam tratados igualmente. Teriam acesso às mesmas condições e aos mesmos direitos e deveres. Contudo, esse modelo se mostra visivelmente irrealizável na prática. É apenas um ideal para onde se pode tender. É um parâmetro utópico que deve sempre ser perseguido, para que tenhamos uma sociedade cada vez mais justa e mais próxima de uma idealidade. A fórmula de justiça que visa dar a cada um o mesmo tratamento é inexeqüível pelo simples fato de que as pessoas não são iguais. Possuem grandes diferenças entre si, de ordem econômica, religiosa, cultural, etc. Definitivamente, em nada seria razoável não se levar em conta, na aplicação do justo, os méritos, as necessidades, as condições, os atos, as virtudes, o trabalho, o esforço e o talento das pessoas. Segundo o filósofo Chaïm Perelman, para uma correta aplicação da justiça, um tratamento igual somente deve ser reservado aos seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial, ou seja, seres que possuem a mesma característica que se faz de alguma forma relevante em relação a uma situação determinada. Deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na estrita e exata medida de suas desigualdades. Portanto, para dar a cada um o que lhe é de direito, é inevitável que se façam distinções entre as pessoas. O que nos cabe indagar, para que não sejamos arbitrários, é, quais características são, de fato, essenciais e relevantes para ministrar a justiça? E como elege-las racionalmente? O fator raça deve ser considerado?

Para aplicar todo o aludido à questão das reservas de vagas para negros em universidades públicas, faz-se necessário que previamente seja demonstrada a situação atual do problema do acesso ao ensino superior público no Brasil. Numa visão extremamente ilusória, seria o ideal de justiça se dar a cada pessoa o mesmo tratamento. Num país onde todos os cidadãos tivessem livre ingresso às universidades públicas. Numa outra acepção também idealista e ainda utópica, dadas as condições sócio-econômicas diametralmente opostas existentes entre os integrantes de nossa população, seria justo dar a cada um o que lhe é de direito segundo seus próprios méritos, numa sociedade em que se fornecesse a todos seus integrantes, iguais condições de formação e de disputa para o acesso ao nível superior. Prestando um ensino público, de nível fundamental e médio, que tivesse a mesma qualidade da educação privada. Garantindo assim, a ricos e pobres, negros e brancos, as mesmas oportunidades de admissibilidade nas universidades públicas. Infelizmente, nenhuma dessas concepções ocorrem em nosso país, tampouco possuem uma possibilidade real de serem implantadas num curto ou médio lapso de tempo. Nossas escolas públicas são extremamente precárias, sofrem com a falta de verbas e de professores qualificados. As instalações estão longe de serem adequadas. Faltam bibliotecas, laboratórios e computadores. Existe uma carência de incentivos aos alunos e pais, e, talvez o que seja o mais grave, falta visão e vontade política dos governantes. Estes, em grande parte, não enxergam ser a educação o principal investimento que uma nação pode fazer para garantir um futuro mais próspero e harmônico. Todos esses fatores resultam inevitavelmente no fato de que a esmagadora maioria dos alunos, por serem provenientes de escolas publicas, não conseguem competir com os alunos das escolas privadas, já que estes tiveram acesso a uma educação de qualidade infinitamente superior.

Assim sendo, devemos achar outro modo de garantir o emprego da justiça e a aplicação da previsão constitucional de igualdade de condições para o acesso ao ensino. Mas para isso, é indispensável que tenhamos uma visão clara e objetiva do fator que restringe à determinada parcela da população, o ingresso universitário. Numa primeira análise, vemos com nitidez, que quem tem acesso a uma educação de nível fundamental e médio de qualidade, que infelizmente em nosso país é sinônimo de ensino privado, é quem consegue de fato adentrar os portões das universidades públicas, estas sim de qualidade reconhecida. Os provenientes de uma instrução fundamental e média de categoria inferior, ou seja, a proporcionada pelo Estado, ficam excluídos do ensino superior e conseqüentemente não terão grandes oportunidades de trabalho no futuro. Numa última análise, conclui-se naturalmente que quem tem capacidade de ter uma educação de qualidade, é quem possui boas condições financeiras e, por conseguinte, pode pagar escolas privadas. Portanto, é uma parcela pequena e privilegiada da população. A grande maioria das pessoas não possui tal condição, e está fadada a jamais ter um diploma universitário. Deste modo, o elemento essencial e relevante do qual devemos fazer uso para diferenciação dos seres e a conseqüente aplicação do justo, é indubitavelmente o fator CONDIÇÃO ECONÔMICA.

Cogitar a RAÇA como sendo um fator fundamental para a caracterização das pessoas na aplicação da justiça com relação ao acesso ao ensino superior público, ou mesmo em qualquer outra hipótese, é querer combater as atrocidades do racismo com um racismo “do avesso”, tão nefasto e repugnante quanto o primeiro. É estabelecer pela via da Lei ou do regulamento, a legitimidade do “apartheid”, no caso, universitário. Não é o fato de ser negro que bloqueia a entrada do cidadão na universidade, pois o ingresso se dá através de uma prova que avalia, objetivamente, o conhecimento do candidato, e não sua cor. O negro rico possui acesso à mesma educação e as mesmas condições de vida do branco rico, não seria justo que pelo simples fator raça, aquele tivesse privilégios em relação a este, e vice versa. Da mesma forma ocorre com o negro pobre em relação ao branco pobre. É inegável e notório que a raça negra sofreu ao longo de toda a história nacional, grandes preconceitos, e ainda hoje os sofrem de maneira acentuada. O crime de racismo deve sim ser combatido e gerar o asco, a repugnância e uma total aversão por parte dos homens de bem. Contudo, não se fará justiça social colocando o peso da dívida histórica que o povo brasileiro tem para com seus cidadãos negros, nos ombros de um branco pobre, vizinho de barraco do negro pobre, portanto um igual. Não é delegando tamanha pena a um inocente, e dessa forma destruindo seu futuro, que se fará justiça, pois o mesmo ato injusto e arbitrário com relação a um, não pode ser justo com relação a outro.

A eleição do fator diferenciador econômico, acarretaria inevitavelmente numa maior inserção dos negros nas universidades. Mas isso ocorreria unicamente pelo fato de ser a raça negra, a maior parte da classe social pobre, e não por ter ela, qualquer tipo de privilégio em relação a qualquer outra raça.

Uma excelente maneira de se aplicar uma fórmula de justiça que leve em conta, como elemento relevante de diferenciação de categoria essencial, a condição econômica, seria sem dúvida a imposição de reservas de vagas, pois o acesso à universidade seria dividido em dois pólos. De um lado, disputariam entre si, os que possuem boas condições financeiras e conseqüentemente podem pagar uma educação privada de qualidade. De outro lado, competiriam pelas vagas, do mesmo modo entre si, os que são oriundos do ensino público e que comprovem não terem tido acesso a um ensino privado por não possuírem condição econômica capaz de suprir tal custo. Dessa maneira, os iguais disputariam entre os iguais, e, ao mesmo tempo, daríamos as mesmas condições de disputa de vagas para classes sociais diferentes, ou seja, os desiguais serão tratados desigualmente, levando-se em conta para isso, uma característica diferenciadora relevante e eleita racionalmente, pois tem por base o real fator restritivo do acesso à universidade pública, qual seja o ECÔNOMICO, jamais o racial.

Endrigo Hering

é estudante do 2.o. ano da Faculdade de Direito de Curitiba.E-mail:
endrigohering@hotmail.com

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