Será o Tribunal Penal Internacional permanente a panacéia para todos os males?

O novo século inicia-se com um boa-nova. A recente Convenção de Roma, realizada em 1998, estabeleceu a criação de um Tribunal Penal Internacional, responsável pela investigação, instrução e julgamento de crimes de genocídio, de guerra, de ameaça e contra a humanidade. Apesar de ser visto como a panacéia por vários autores nacionais, há que se analisar a atuação do Tribunal Penal Internacional com muito cuidado, pois várias são as implicações que a sua existência traz ao direito nacional.

Esse tribunal é fruto de uma tendência cada vez maior de internacionalização do Direito Penal, sobretudo naquilo que diz respeito a crimes cometidos contra os “bens jurídicos supranacionais”, assim chamados devido à sua característica de não poderem ser limitados por fronteiras e por interessarem diretamente a toda a humanidade. Além disso, e seguindo as palavras de MANTOVANI, “a partire dalla prima guerra mondiale si è affermata, soprattutto all’estero, una tendenza a concepire, entro certi limiti, il singolo individuo come soggetto di diritti e di doveri di diritto internazionale e che le più gravi trasgressioni a determinate norme primarie di tale diritto fossero da considerare delitti internazionali, punibili già secondo lo stesso diritto internazionale nei confronti degli individui autori”(1).

Tendo entrado em vigor no dia 1.º de julho de 2002, vez que o seu tratado criador já reuniu as sessenta ratificações necessárias(2), o estatuto de Roma, criador da Corte Penal Internacional, é uma esperança contra a impunidade de criminosos que até então se encontravam livres mesmo após o cometimento de bárbaros crimes contra populações inteiras. A ratificação do Estatuto de Roma por 67 países(3) permitiu o nascimento de um sistema jurídico penal completo, com as devidas garantias penais e processuais necessárias à realização da justiça penal. Eis o diferencial de tal instituição frente aos outros tribunais penais internacionais de exceção já criados, tais como os tribunais de Nuremberg e Tóquio(4), bem como os recentes Tribunais Penais Internacionais para a ex-Ioguslávia e Ruanda(5). Nessas instituições “ad hoc”, ferem-se diversos princípios de direito – tais como o juízo natural – além da própria soberania dos países aonde intervém.

O Brasil já assinou o referido tratado (na data de 7 de fevereiro de 2000), embora ainda não o tenha ratificado (o processo de ratificação encontra-se em trâmite no Congresso Nacional). Isso demonstra a intenção nacional de fazer parte do Tribunal Penal Internacional, submetendo o País a um sistema jurídico transnacional que assumirá uma importância gigantesca nos próximos anos.

Mas a situação não é assim tão simples. Diversas questões põem a Corte Penal Internacional em xeque, e merecem um estudo aprofundado, tanto por parte dos internacionalistas quanto dos penalistas. Uma tal instituição não compete com o ordenamento jurídico de seus países membros, ferindo-lhes a soberania? Existe a possibilidade de uma quebra no princípio do “ne bis in idem”? Estaria o sistema jurídico brasileiro apto a ratificar tal tratado? De que forma funcionam os fatos de exoneração da responsabilidade penal segundo o estatuto do Tribunal Penal Internacional? Como fica a questão da eventual incompatibilidade de alguns artigos do tratado de Roma frente à Constituição Federal Brasileira como, por exemplo, a adoção da pena de prisão perpétua pela convenção (art.77, 1, letra “b” do estatuto(6), que é expressamente proibida pela Carta Magna nacional (art. 5.º, XLVII, b)?

E o que nos parece mais preocupante: essa estrutura poderosa não poderia vir a ser usada com fins políticos e de pressão, inclusive, econômica?

Ratificar o referido tratado implica uma transferência de soberania a um ente supranacional, inclusive a eventual submissão do cidadão brasileiro a um regime jurídico diferente do pátrio e determina obrigatória a cooperação do nosso País às perquisições do Tribunal Penal Internacional(7). Cria uma forma de competência “subsidiária” no caso de certos crimes (genocídio, por exemplo, da lei n.º 2889/56) e aplica sob outra ótica, e novas formas, tradicionais institutos penais já consagrados em nosso Direito.

Como se só isso não fosse o suficiente para determinar a extrema importância do tema, deve-se lembrar que a partir de 2009 haverá uma revisão do Estatuto de Roma(8), que poderá permitir uma extensão da competência do Tribunal Penal Internacional (para o crime de tráfico internacional de drogas, por exemplo, de interesse enorme para o Brasil), na qual necessariamente serão produzidas conseqüências relevantes dentro do ordenamento jurídico pátrio.

O Estatuto de Roma é uma criação de extrema importância. Vem suprir uma formidável lacuna no direito internacional penal, garantindo a humanidade contra desvarios genocidas. Mas não se pode esquecer que a estrutura toda tem falhas e a sua incorporação ao sistema jurídico nacional não pode ser feita a toque de caixa, sem a devida análise dos seus institutos. O eventual uso político do Estatuto de Roma, especialmente em tempos de Bin Laden, nos preocupa seriamente. Uma ratificação do Estatuto “para inglês ver” não é a melhor saída, mesmo que seja a forma mais rápida e fácil de garantir ao Brasil vantagens no plano internacional. Que se tome muito cuidado ao ratificar esse tratado, “pois mesmo os muito sábios não conseguem ver os dois lados”(9).

NOTAS

(1) MANTOVANI, Ferrando. Diritto Penale. Itália: Cedam, 1992, p. 960.

(2) O Tribunal Penal Internacional dependia, segundo Estatuto de Roma (criado pela “United Nations Diplomatic Conference of Plenipotentiaries on the Establishment of an International Criminal Court”, em Roma), de sessenta ratificações (artigo n.º 126.1) para a sua entrada em vigor, conseguidas em 11 de abril de 2002. Entrou em exercício no dia 1.º de julho de 2002.

(3) Dados atuais em 29 de maio de 2002.

(4) Os tribunais de Nuremberg e de Tóquio foram, na verdade, tribunais criados pelos vencedores para julgar os vencidos. Criados pelo Acordo de Londres de 8 de agosto de 1945 e pela Proclamação Especial do Comandante Supremo das Forças Aliadas no Extremo Oriente em data de 19 de janeiro de 1946, respectivamente, serviram exatamente para a condenação de oficiais alemães e japoneses por crimes cometidos durante a Segunda Grande Guerra. Mas não se pode imaginar que apenas alemães e japoneses tenham sido responsáveis por atrocidades em campos de batalha. Fatos como o bombardeio de Dresden (uma simples demonstração de força aliada) e a segunda bomba atômica americana lançada sobre o Japão (esqueçamos por enquanto a primeira carga carregada pelo bombardeiro B-29 Flying Super Fortress Enola Gay, pois há quem considere que esta fora necessária para garantir a paz no Pacífico), realizados pelos Aliados, deixaram tanto mal sobre a Terra quanto qualquer um dos crimes de guerra praticados pelo Eixo.

(5) Tais Tribunais carregam a mácula de terem sido criados por decisões do Conselho de Segurança da ONU, e não contam com aprovação unânime da comunidade internacional. Além disso, criados “a posteriori”, não garantem aos seus acusados todos os direitos fundamentais que valem para qualquer criminoso, como o devido processo legal e o juízo natural.

(6) “… 1.Sous réserve de l’article 110, la Cour peut prononcer contre une personne déclarée coupable d’un crime visé à l’article 5 du présent Statut, l’une des peines suivantes:

Une peine d’emprisonnement à perpétuité, si l’extrême gravité du crime et la situation personnelle du condamné le justifient.”

(7) O artigo 120 do Estatuto de Roma não permite a ratificação do tratado com ressalvas.

(8( Conforme determinado pelo artigo 121 do Estatuto.

(9) TOLKIEN, John R. R..”A Sociedade do Anel”, volume primeiro da obra “O Senhor dos Anéis”. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 61.

Rui Carlo Dissenha é advogado, mestrando em Direito Penal pela UFPR, Diplôme Supérieur de l’Université pela Université Paris II – França (especialização).

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