Separação e divórcio extrajudiciais: pontos polêmicos da Lei Nº 11.441/2007 – III

Para a realização da escritura de separação ou divórcio consensuais, é indispensável a presença dos cônjuges pessoalmente em Cartório. Embora já se tenha pretendido o contrário, tal comparecimento é imprescindível por vários motivos. A uma, porque a lei não o dispensou, permanecendo em vigor as normas processuais até então vigentes a este respeito. A duas, porque se faz necessário demonstrarem os cônjuges ao Oficial que estão livres e determinados no propósito de se separarem, não estando sob pressão.

Não se trata, como pretende Cristiano Chaves de FARIAS, de permitir ou negar a representação, e muito menos de conferir maior importância à dissolução do que ao casamento (que permite a representação)(48). A representação, em si, é sempre permitida. O que está se afirmando aqui é a necessidade de os cônjuges comparecerem pessoalmente ao ato, para que seja averiguada a espontaneidade da declaração de vontade. E veja que o comparecimento pessoal é exigido em atenção ao casamento mesmo, não à sua dissolução. Portanto, com esta exigência não se está dando mais importância à dissolução do que ao casamento, mas justamente reafirmando a importância do casamento.

Deve-se notar não haver competência territorial fixada para a escritura. A Lei de Registros Públicos (Lei n.º 6.015/73) só estabelece competência para a prática de atos registrais e de averbação, não para os atos de escrituração. Podem os cônjuges efetivar a separação em qualquer Cartório. E nem é o caso de se aplicar aqui a regra do art. 100, inc. I, do Código de Processo Civil, que determina privilégio de foro para a mulher; se nem para a separação consensual feita em Juízo tal regra é aplicável(49), muito menos o será para a separação extrajudicial.

Mas isto pode levar a um outro problema: se os cônjuges fizerem duas escrituras de separação ou duas escrituras de divórcio em Cartórios diferentes, qual delas terá eficácia? Há duas soluções possíveis: ou terá eficácia a que tiver sido feita em primeiro lugar, ou a que for registrada primeiramente.

3.6. Recusa à Realização da Escritura

A nova lei, em sua perigosa simplicidade, não regulou uma questão de extrema relevância: a aplicação da regra do parágrafo único do art. 1.574. Diz este dispositivo, reproduzindo o que já dizia o art. 34, § 2.º, da Lei do Divórcio: ?o juiz pode recusar a homologação e não decretar a separação judicial se apurar que a convenção não preserva suficientemente os interesses dos filhos ou de um dos cônjuges?.

Em primeiro lugar, convém notar que esta regra não se confunde com a chamada cláusula de dureza, constante do art. 6.º da Lei do Divórcio, que foi abolida pelo novo Código Civil(50). A cláusula de dureza nunca se aplicou à separação consensual, tão-somente à separação litigiosa não culposa, permitindo ao Juiz negar a separação quando ela fosse causa de agravamento da situação pessoal do cônjuge réu(51). Ademais, é de se repudiar também a alegação de inconstitucionalidade da regra do parágrafo único do art. 1.574(52); não há qualquer afronta ao princípio da liberdade no dispositivo; não se pode compreender tal princípio de forma tão ampla a ponto de impedir a proteção do Estado à estabilidade da família e à preservação dos interesses dos cônjuges e, sobretudo, dos filhos.

A questão agora é: como aplicar tal disposição quando a separação é feita em Cartório? Em primeiro lugar: poderá o Oficial recusar-se a realizar a escritura? Esta questão parece-nos simples. Como servidor público que é, incumbe-lhe evitar nulidades. Se constata que o acordo não preserva suficientemente os interesses de um dos cônjuges(53), deve ele naturalmente recusar-se à celebração do acordo, recomendando aos cônjuges que refaçam o acordo(54).

Repudiamos, data venia, o entendimento esposado por Cristiano Chaves de FARIAS no sentido da ?absoluta impossibilidade do tabelião recusar-se a homologar(55) a escritura pública dissolutória do casamento, por falta de previsão e por atentar contra a liberdade das partes?, fundando seu entendimento, entre outras razões, no fato de a lei dispensar a homologação judicial. O autor chega a dizer que ?havendo algum vício na declaração de vontade não cabe ao tabelião (que não detém poderes para tanto) discuti-lo. O caminho será a propositura de ação anulatória?(56). Tal entendimento, contudo, não pode ser acolhido. Em primeiro lugar, não falta previsão legal para tal recusa; ao contrário, ela é determinada pelo citado parágrafo único do art. 1.574, que não foi alterado pela Lei n.º 11.441/07. Segundo, não podemos falar em liberdade das partes em nível absoluto, a ponto de nenhum limite se poder opor; e, sobretudo, não se pode falar em liberdade a ponto de permitir que um dos cônjuges seja pressionado pelo outro (ou pelo advogado do outro, ou até pelo advogado comum) a realizar um acordo contra os seus interesses. Que liberdade seria esta, que chegaria ao ponto de ferir a liberdade alheia? Terceiro, a desnecessidade de homologação judicial não significa que o tabelião não tenha que cumprir as normas referentes à separação consensual que eram determinadas ao Juiz antes de se permitir a separação em Cartório. Quarto, não se pode permitir a realização de um negócio nulo para se viabilizar a sua anulação em seguida; se o Oficial tem conhecimento do vício, cumpre-lhe evitar a nulidade. Parece-nos, portanto, evidente que o Oficial do Cartório não só pode como deve recusar-se à homologação nos casos citados no art. 1.574, parágrafo único.

Mas o problema maior que vemos aqui é outro: na prática, esse dispositivo será aplicado quando a separação for feita em Cartório? Tem o Oficial condições efetivas de aplicar essa disposição? Vai ele efetivamente se preocupar em investigar realmente as condições em que se deram o acordo e em que ficarão os cônjuges após a escritura? Parece-nos que, como dissemos inicialmente, ao contratualizar ao extremo a dissolução do casamento, o legislador se esqueceu das relações pessoais dos cônjuges. O Oficial certamente não tem preparo suficiente e, sobretudo, não terá informações suficientes para alcançar a aplicação desta regra. Creio que muito raramente se observará as condições pessoais dos cônjuges eventualmente pressionados a um acordo, situação que ocorre freqüentemente.

É claro que o acordo realizado em Cartório estará sempre sujeito à anulação judicial. Mas isto não pode justificar o desleixo na aplicação da norma legal. Não se pode permitir que se celebrem atos nulos ou anuláveis simplesmente porque eles podem ser declarados nulos ou podem ser anulados posteriormente. É dever de ofício de todo agente público evitar nulidades. A lei deveria ter mais precaução em situações como esta. Este é, em nosso modo de ver, um dos pontos mais negligenciados na nova lei. Observe-se que, muitas vezes, a situação de penúria resultante de um acordo mal feito pode ser tamanha, que o cônjuge prejudicado talvez não tenha condições nem mesmo de promover a anulação do acordo.

3.7. Facultatividade do Procedimento

Anote-se ainda que a realização da separação ou do divórcio consensuais em Cartório é faculdade dos cônjuges, não impedindo o procedimento judicial, se assim preferirem(57).

Já se fala, contudo, em falta de interesse processual na ação judicial de separação consensual, pretendendo-se que, uma vez permitida a separação em Cartório, não cabe o acesso ao Judiciário(58). Com a devida vênia, não podemos concordar com semelhante entendimento. A lei é expressa em facultar aos cônjuges a celebração da separação ou do divórcio em Cartório, não são eles obrigados a tanto. Podem os cônjuges perfeitamente optar pelo procedimento judicial. Ademais, a Lei n.º 11.441/07 deixou incólumes os arts. 1.120 a 1.124 do Código de Processo Civil(59), que regulam a separação judicial consensual. Se tivesse ela a intenção de impedir o processo judicial, teria simplesmente substituído esses dispositivos pelas novas regras; ao contrário, acresceu apenas um artigo (1124-A), sem alterar nenhum daqueles. Fica evidente a intenção da lei de dar uma opção aos cônjuges, não obrigá-los ao procedimento extrajudicial.

O entendimento no sentido da obrigatoriedade pode conduzir a uma conclusão absurda: se os cônjuges efetivamente não quiserem fazer a separação pela via extrajudicial, negando-se-lhes o acesso à Justiça para tanto, terão eles que simular um dissenso para que possam efetivar a separação judicial litigiosa, o que é um disparate. E outro: em um processo judicial litigioso, ao conciliar os cônjuges, poderá o Juiz obter deles a transformação do processo litigioso em consensual. Terá ele então que extinguir o processo e remeter os cônjuges às vias cartorárias?

Fala-se ainda na extinção de processos pendentes sem julgamento do mérito, pela ausência superveniente de condição da ação(60). Se se acolher este entendimento, causar-se-á às partes um novo ônus absolutamente desnecessário e indevido. Já tendo pago as custas do processo, e já tendo decorrido tempo razoável, tudo ficará perdido e será necessário começar tudo de novo, agora pela via cartorária, com novas custas e, por que não dizer, com novos honorários advocatícios, já que o advogado recebeu para fazer o processo judicial, sendo razoável que cobre novamente para um novo procedimento. Quanta incongruência neste entendimento, defendido justamente por aqueles que advogam o procedimento em Cartório como uma forma de facilitação da dissolução do casamento!

3.8. Aplicação à Conversão em Divórcio

A lei não deixa claro, mas parece-nos possível também a conversão consensual da separação em divórcio em Cartório, sem procedimento judicial. Não seria mesmo razoável permitir o divórcio direto em Cartório e não a conversão da separação em divórcio(61). Pode-se, até mesmo, entender que a hipótese está contemplada na lei, já que fala em divórcio sem especificar que se refere apenas ao divórcio direto. Sendo a conversão da separação em divórcio uma espécie de divórcio, e não sendo a lei restritiva ao falar em divórcio, pode-se mesmo entender que a conversão está incluída na referência pura e simples da lei ao divórcio(62).

Requer-se, para tanto: a) que não haja filhos menores ou inválidos; b) a observância do prazo de um ano de separação judicial, devendo o Oficial, para celebrar a escritura, exigir comprovação da separação judicial transitada em julgado em prazo ânuo; c) a descrição e a partilha de bens (se já não efetivada por ocasião da separação ou posteriormente); d) a fixação da pensão alimentícia entre os cônjuges (que, em princípio, será a mesma até então existente); e) a disposição a respeito do nome dos cônjuges (se já não decidida por ocasião da separação); f) a intervenção de advogado comum ou de um advogado para cada parte.

Ressalte-se, ainda, que, para a conversão, ao contrário da separação e do divórcio direto consensuais, não se requer a presença dos cônjuges em Cartório, já que tal presença também não seria exigida para o procedimento judicial de conversão. Nada impede, portanto, que os cônjuges façam a conversão por procuração.

Notas:

(48)  FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., item 4.

(49)  Vide a propósito CARVALHO NETO, Inacio de. Op. cit., item 4.2, p. 109-110.

(50)  Confusão lamentável feita por FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., item 5.

(51)  Para maiores detalhes a respeito da cláusula de dureza, vide CARVALHO NETO, Inacio de. Op. cit., item 6.5, p. 244-245.

(52)  Alegação feita, isoladamente, por DIAS, Maria Berenice (Manual de direito das famílias. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 263. Apud FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., item 5).

(53)  Naturalmente, a parte do dispositivo que fala em filhos não se aplica ao caso, pois é pressuposto da realização da separação em Cartório a inexistência de filhos incapazes.

(54)  Entendendo semelhantemente: GABURRI, Fernando. Op. cit., p. 1. O autor diz, contudo, que, em lugar de recusar à realização da escritura, deve o Oficial do Cartório remeter as partes às vias judiciais, o que não nos parece de todo exato, embora se trate de uma solução prudente.

(55)  Com a devida vênia, não cremos correto falar em ?homologação? da escritura pelo tabelião; homologação faria o Juiz, o que está dispensado pela lei. Parece-nos que o tabelião faz a escritura, celebra-a, não a homologa.

(56)  FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., item 5.

(57)  Neste sentido: SANTOS, Romualdo Baptista dos. Op. cit., p. 2; TARTUCE, Fernanda. Em debate. In: Boletim IBDFAM. Belo Horizonte, jan.-fev./2007, v. 42, p. 4-5.

(58)  Neste sentido: FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., item 3; DIAS, Maria Berenice. Os alimentos… cit., p. 1; FACHIN, Luiz Edson. Em debate. In: Boletim IBDFAM. Belo Horizonte, jan.-fev./2007, v. 42, p. 4; FRANCO, André; CATALAN, Marcos. Separação e divórcio na esfera extrajudicial: faculdade ou dever das partes? Artigo até o momento inédito, enviado por e-mail pelo segundo autor, passim.

(59)  Há quem entenda que estes dispositivos estariam tacitamente revogados pela nova lei (Cf. FRANCO, André; CATALAN, Marcos. Op. cit., item 1).

(60)  Neste sentido: FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., item 10; GABURRI, Fernando. Op. cit., p. 3.

(61)  No mesmo sentido: FARIAS, Cristiano Chaves de. Op. cit., item 8; GABURRI; Fernando. Op. cit., p. 2; SANTOS, Romualdo Baptista dos. Op. cit., p. 1; LÔBO, Paulo Luiz Neto. Op. cit., p. 5.

(62)  Neste sentido: OLIVEIRA, Euclides de. Em debate. In: Boletim IBDFAM. Belo Horizonte, jan.-fev./2007, v. 42, p. 4.

Inacio de Carvalho Neto é especialista em Direito pela Universidade Paranaense Unipar. Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá  – UEM. Doutor em  Direito Civil pela Universidade de São Paulo – USP. Pós-Doutorando em Direito Civil pela Universidade de Lisboa, Portugal. Professor Titular de Direito Civil nas Faculdades Integradas Curitiba – FIC. Professor de Direito Civil na Escola do Ministério Público e na Escola da Magistratura do Paraná. Promotor de Justiça no Paraná. Autor dos livros (entre outros): Separação e divórcio: teoria e prática, pela ed. Juruá, em 8.ª edição; Abuso do direito, pela ed. Juruá, em 4.ª edição; Responsabilidade civil no direito de família, pela ed. Juruá, em 2.ª edição; Curso de direito civil: teoria geral do direito civil, v. 1, pela ed. Juruá; Direito sucessório do cônjuge e do companheiro, pela ed. Método; e de diversos artigos publicados em diversas revistas jurídicas.

Voltar ao topo