Reformas penais (XX): Lei penal não é produto de mercado

Todas as vezes que nosso legislador se reúne para aprovar novas leis penais deveria adotar como premissa básica a seguinte: a lei penal não é produto de mercado. Em outras palavras, lei penal não é geladeira nem fogão elétrico, isto é, não é produto de consumo difuso. Não se ignora a existência de uma forte demanda para esse produto (a sociedade, acuada, não sabendo o que fazer diante do agudo quadro de violência, exterioriza o que há de mais atávico em seu psiquismo coletivo: pede vingança). Apesar disso, cabe ao legislador atuar com prudência, equilíbrio e razoabilidade. Para isso, aliás, é que são (os legisladores) eleitos.

As profundas aberrações, inconstitucionalidades e contradições reveladas no trabalho da Comissão Mista do Senado, que contou com participação decisiva, dentre outros, dos deputados Luiz Antonio Fleury e Laura Carneiro, nos conduz a buscar uma explicação mais sólida e convincente, que transcenda o simples interesse eleitoreiro. Detrás de tanta precipitação e anomalia há (ou deve haver) algo mais significativo.

A elaboração de uma lei também é uma questão ética. Juiz que está respondendo a um processo criminal não pode julgar fato análogo (CPP, art. 254, II). Deve dar-se por suspeito ou será recusado pelas partes. Essa regra deveria valer, do mesmo modo, para os parlamentares. Quem responde por processo criminal não poderia legislar nessa área.

Por quê? Vejamos: no tempo da lei bíblica do talião (olho por olho, dente por dente) a sociedade tradicional (praticamente) não tinha nenhuma preocupação ética. A retaliação era a regra. Desde, entretanto, que o Novo Testamento recolheu a pregação de Cristo (“Quem estiver sem pecado, jogue a primeira pedra”), só pode julgar ou condenar ou punir os outros quem tem autoridade moral ilibada.

A versão laica (psicanalítica e freudiana) da recomenção do Evangelho, como nos ensina Contardo Calligaris (Folha de S. Paulo de 17.5.01, p. E8), diz assim: “Só podemos punir de maneira radical se, punindo, não estivermos reprimindo nos outros algo que queremos, de fato, reprimir em nós”.

Seguindo os passos do autor citado cabe sublinhar o que segue: um dos maiores (e inconfessáveis) prazeres do ser humano talvez seja exatamente este: reprimir e punir nos outros aquilo que está dentro de nós. Explicação de Freud: cada vez que somos levados a desistir de alguma satisfação, a raiva de ter que renunciar se transforma em vontade de policiar e de reprimir os outros.

Salienta-se que esse “negócio” de ter que observar regras da comunidade, que nos impedem de exteriorizar nossas recônditas inclinações criminosas e sexuais, constitui um fardo muito custoso. Em geral aceitamos (ou somos compelidos a aceitar) tais regras, mas vigiando e punindo os outros. Quanto mais você se reprime (quanto mais o ladrão é impedido de furtar ou roubar, seja dinheiro privado, seja dinheiro público), mais você se transforma num repressor. A lógica é mais ou menos a seguinte: “Já que eu não posso, também os outros não farão isso”.

Em síntese, “reprimimos em nós desejos e fantasias cuja atuação nos parece ameaçar o convívio social. Logo, frustrados, zelamos pela prisão daqueles que não se impõem as mesmas renúncias”.

Quanto mais radicalizamos nas penas e nas repressões (aos outros), maior a nossa ilusão de que estamos liquidando o que há de pior em nós mesmos. Quanto mais pena e castigo para os criminosos, mais nossa alma ganha em leveza. Punindo-se os outros, tiramos das nossas costas o peso de tudo quanto estamos reprimindo em nós mesmos.

Exemplificando: os mais reprimidos (historicamente) em suas vontades masturbatórias, foram (e são) exatamente os que mais mandaram mutilar os pênis dos outros. Pune-se nos outros fantasias que estão dentro de você. Não foge a essa regra a extirpação do clitóris para que não haja o desejo feminino. Nas cadeias brasileiras é comum o estuprador matar outros autores de crime sexual. No fundo, está punindo nos outros seus desejos sexuais inconfessáveis que ele reprime nele mesmo.

Nesse contexto, quanto mais “justiceiro” revela-se o legislador, mais exterioriza (em geral) a pressa em suprimir desejos inconfessáveis, embora sob o manto de se querer fazer justiça.

Que a justiça dura e implacável apregoada por grande parcela dos nossos legisladores ou mesmo pelos que sustentam o movimento da lei e da ordem não seja, no fundo, a exorcização das suas piores (e mais deploráveis) fantasias. Porque é muito fácil e cômodo reprimir seus próprios desejos, porém, distribuindo a pena para os outros.

Luiz Flávio Gomes

(falecom@luizflaviogomes.com.br). Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente do IELF – Instituto de Ensino Jurídico (www.ielf.com.br) e autor do curso de DP pela internet (www.iusnet.com.br) N.E. Este artigo é o último da série “Reformas Penais”, que teve a primeira parte publicada na edição de 11/8/2002.

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