Reformas penais (XVIII): Mudar sim, piorar não

Os projetos de reforma do Código de Processo Penal, do Código Penal e da legislação sobre drogas (comentados nos artigos anteriores) já estavam em tramitação na Câmara dos Deputados quando do advento da morte do prefeito Celso Daniel. Diante da profunda repercussão que esse fato causou, formou-se (imediatamente) uma comissão mista no Congresso Nacional (composta de deputados e senadores) destinada “a levantar e diagnosticar as causas e efeitos da violência que assola o País”.

Trabalharam a toque de caixa e em dois meses apresentaram mais de vinte (mirabolantes) projetos. Vários já foram aprovados no Senado Federal (Projetos 70/02, 71/02, 72/02, 106/02, 107/02, 117/02 e 115/02), mas devem ainda passar pela Câmara dos Deputados.

Os projetos da Comissão Mista, em geral, constituem fiel espelho da conhecida e aberrante política criminal dissuasória, que tem inspiração no chamado movimento da lei e da ordem (declaradamente reacionário). Imagina-se que com novas leis penais duras, claramente repressivas, bem como com o corte de direitos e garantias fundamentais, tudo estará resolvido.

Ninguém certamente questiona o fato de que necessitamos de uma ampla reforma penal e processual penal, para fazer frente a uma criminalidade crescente e cada vez mais preocupante. Mas essa justa pressão social por mudanças não pode dar ensejo a uma atabalhoada reforma legislativa que abrigue inconstitucionalidades flagrantes, retrocessos patentes e contradições alarmantes.

No que concerne ao julgamento pelo Tribunal do Júri a Comissão Mista praticamente eliminou todas as inovações sugeridas pela comissão presidida pela professora Ada Pellegrini Grinover (fase instrutória antes do recebimento da denúncia; interrogatório após a colheita das provas; recebimento da denúncia equivalente à pronúncia; provas colhidas na presença dos jurados, com observância da imediatidade física do juiz; substancial simplificação dos quesitos; eliminação dos “jurados profissionais”; celeridade do julgamento; possibilidade de sua realização sem a presença do acusado; uso restrito de algemas etc.). Todos esses avanços foram aniquilados pelo Projeto aprovado no Senado Federal.

Garantias fundamentais como autodefesa, direito ao silêncio, juiz natural, imediação probatória, celeridade nos julgamentos, dignidade do acusado etc. foram simplesmente ignoradas. O legislador ordinário, muitas vezes, faz da Constituição um papel molhado.

Pelos projetos da Comissão Mista o silêncio do acusado pode ser levado em conta para o convencimento do juiz. A inconstitucionalidade disso é manifesta. Por força do princípio da presunção de inocência, a prova da culpabilidade compete a quem faz a acusação. Não é o acusado que tem que provar sua inocência, sim, cabe à acusação provar a sua culpabilidade.

Elimina-se, de outro lado, a garantia da efetividade da defesa técnica. Desconsidera-se que o princípio do contraditório, quando não efetivo e concreto, fica reduzido a uma pura formalidade. Mas é justamente isso o que estão pretendendo com os projetos aprovados no Senado.

As provas (orais) colhidas durante a fase policial, de outro lado, podem ser consideradas pelo juiz para o efeito de condenação penal. Isso constitui aberração jurídica inqualificável. Todos sabemos que somente as provas submetidas ao contraditório é que podem desfazer a presunção de inocência. A afronta ao devido processo legal é patente. O juiz só pode formar seu livre convencimento com base nas provas colhidas com todas as garantias legais e constitucionais.

As provas (orais) do inquérito policial são válidas para o oferecimento da acusação, nunca para formar a convicção do juiz. Daí o acerto da regra vigente no direito italiano no sentido de ser o inquérito excluído da ação penal.

A admissão das provas ilícitas derivadas quando sua exclusão tornar impossível a verificação da existência do crime conflita diametralmente com o disposto no art. 5.º, inc. LVI, da CF (que diz serem inadmissíveis as provas ilícitas). Essas provas não só devem ser excluídas do processo (exclusionary rules), como delas o juiz que vai julgar o caso não pode ter conhecimento, sob pena de contaminação irreversível.

Luiz Flávio Gomes

(falecom@luizflaviogomes.com.br). Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente do IELF – Instituto de Ensino Jurídico (www.ielf.com.br) e autor do curso de DP pela internet (
www.iusnet.com.br)

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