A Lei 9.099/95 (lei dos juizados criminais), no seu art. 89, contemplou a suspensão condicional do processo, que consiste na possibilidade de o acusado, para evitar o processo e eventualmente uma condenação, ser colocado em regime de prova durante certo período. Isso só era possível, pelo texto legal, nos crimes cuja pena mínima não fosse superior a um ano. O STJ (RHC 12.033-MS, Félix Fischer, j. 13.8.02) acaba de ampliar esse limite para dois anos (pena mínima até dois anos já admite a suspensão condicional do processo – cf. www.ielf.com.br).
O projeto de reforma da Parte Geral do Código Penal, que conta, como toda obra humana, com pontos positivos e negativos, equivocadamente, segundo nosso juízo, pretende definhar o instituto da suspensão condicional do processo. No seu lugar foi projetada a suspensão facultativa da ação penal (art. 100-B), só cabível quando a “pena máxima cominada não for superior a dois anos”.
Hoje a suspensão é cabível (segundo o STJ) quando a pena mínima não for superior a dois anos. Cerca de 90% dos crimes previstos na legislação brasileira são alcançados por esse limite. A proposta apresentada no projeto reduz essa possibilidade para menos da metade.
Conseqüência fatal imediata: a modificação sugerida causará grande colapso e emperramento na Justiça Criminal, porque passará a exigir a realização da instrução criminal (oitiva da vítima e de testemunhas, etc.) em quase todos os casos.
Os juizados especiais criminais e a suspensão condicional do processo, na verdade, foram a grande salvação do emperramento da Justiça Criminal no final do segundo milênio. Antes deles havia a chamada “indústria da prescrição”. Somente em um tribunal em São Paulo ocorriam (antes dos juizados) cerca de 3 mil prescrições por ano. Foram inovações importantes, de dimensão incomensurável.
Cabe somente lamentar que, na prática, muitos juízes e promotores, assim como alguns tribunais (Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo), estão literalmente destruindo todo o espírito ressocializador e reparador de tais institutos (em São Paulo não foram criados os juizados, seus institutos estão sendo aplicados burocraticamente, etc.).
Desde 1995 vem aumentando consideravelmente o número de processos relacionados com a criminalidade pequena e média. E a Justiça, que já não contava com grande capacidade operacional, acha-se agora mais esmigalhada, particularmente em razão dos cortes orçamentários determinados pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Se a Justiça não está aparelhada para cuidar de tantos processos, não trilha bom caminho a proposta (ora em debate) de reduzir o alcance da suspensão condicional do processo. Que se exija do juiz prudência no momento de se aplicar todos os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95 está correto. O que não parece razoável é incrementar o input (a entrada) do sistema penal quando se sabe que não existe a mínima condição de se dar a devida saída (output).
A reforma do CP assume, dentre outras, três premissas extremamente questionáveis: (a) que se disseminou no País a mais execrável impunidade nos delitos de pequena e média gravidade; (b) que não existe justiça e proporcionalidade nas penas previstas para tais infrações; (c) que todas essas infrações “merecem” e “necessitam” a sanção penal.
Ousamos divergir, em grande parte, dessas colocações: (a) com os juizados criminais e a suspensão do processo grande parte da delinqüência pequena e média que não entrava no sistema ou ficava impune agora é sancionada; (b) de outro lado, é muito rara hoje nessas infrações a prescrição; (c) a pena cominada para elas, ademais, é, em regra, a prisão, que é totalmente desproporcional; (d) grande quantidade delas deveriam ser descriminalizadas.
Em suma, o aniquilamento (em grande medida) da suspensão condicional do processo significa retrocesso, (mais) emperramento da Justiça, retorno (da indústria) das prescrições, enfim, é uma medida penalizadora e, sobretudo, judicializadora (burocratizadora), que está na contramão da história do Direito Penal, que se caracteriza não pela sua abolição, senão pela sua intervenção mínima, humanização e racionalidade.
Luiz Flávio Gomes
(falecom@luizflaviogomes.com.br). Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente do Ielf – Instituto de Ensino Jurídico (www.ielf.com.br) e autor do curso de DP pela internet (www.iusnet.com.br).

