Reforma sindical e a reconstrução do “tripé do peleguismo”

Todas as pessoas razoavelmente progressistas que aprenderam as suas primeiras linhas sobre Direito do Trabalho e Sindical no século passado, antes e depois da vigência da Constituição Federal de 1988, ouviram que o caráter paternalista e pouco combativo do sindicalismo tupiniquim repousava em três pilastras básicas solidamente engendradas e construídas sob a inspiração fascista da CARTA DE LAVORO da Itália de Mussolini.

Dizia-se que a unicidade sindical, a intervenção na constituição e no funcionamento do Sindicato por parte do Estado e a Contribuição Sindical formavam o chamado TRIPÉ DO PELEGUISMO, categoria a que pertence o pelego, denominação pejorativa dada ao dirigente sindical bem definida pelo Dicionário Aurélio como sendo a “…designação comum aos agentes mais ou menos disfarçados do Ministério do Trabalho nos sindicatos operários” ou “pessoa subserviente; capacho…”

Com a ascensão à Presidência da República de um ex-sindicalista profundo conhecedor das fragilidades do sistema sindical pátrio, era de se esperar uma reforma sindical elaborada de forma criteriosa e bem intencionada, que partisse de uma visão mais apurada e crítica das vicissitudes do sindicalismo nacional, bem além do umbigo dos dirigentes dos sindicatos e das centrais sindicais de plantão.

Ledo engano!

O que se vê no arremedo de reforma sindical encaminhado pelo Fórum Nacional do Trabalho ao Poder Executivo é a verdadeira consolidação do chamado tripé do peleguismo, que se imaginava desgastado pelas décadas de deserviço prestado à organização da classe trabalhadora.

Sob o pretexto de por fim a centenas de entidades sindicais nanicas, cuja existência cartorial justifica-se pura e simplesmente pelo recebimento de polpudas contribuições sindicais, os reformadores designados pelo governo Lula conceberam uma intrincada e oportunista fórmula para aferir a representatividade dos sindicatos, infactível na prática e passível de propiciar lamentável atrelamento da estrutura sindical a um Estado autoritário.

Assim procedendo olvidaram os consagrados princípios da Liberdade e da Autonomia Sindicais, estabelecidos desde 1.948 pela Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho.

Ratificada por 187 países até 04.05.03 (desde 18.03.54, 19.01.60 e 28.06.62 respectivamente pelo Uruguai, Argentina e Paraguai, para citar exemplos do Mercosul), a referida Convenção estabelece, no seu artigo segundo que “os trabalhadores e os empregadores, sem nenhuma distinção e sem autorização prévia, têm o direito de construir as organizações que estimem convenientes, assim como o de filiar-se a estas organizações, com a única condição de observar os estatutos das mesmas.”

Em seguida, no inciso I do artigo terceiro determina que “as autoridades públicas deverão abster-se de toda intervenção que tenha por objetivo limitar este direito ou entorpecer seu exercício legal”, esclarecendo o artigo quarto que “as organizações de trabalhadores e de empregadores não estão sujeitas a dissolução ou suspensão por via administrativa.”

Mais adiante o seu artigo sétimo consagra o princípio da liberdade e da autonomia sindicais ao asseverar que “a aquisição da personalidade jurídica pelas organizações de trabalhadores e de empregadores, suas federações e confederações, não pode estar sujeita a condições cuja natureza limite a aplicação das disposições dos artigos 2, 3 e 4 desta Convenção.”

Tirante o princípio da unicidade contratual, mantido pelo texto constitucional vigente, é de se reconhecer que a Constituição Federal de 1988, no inciso I do seu artigo oitavo, conseguiu solapar em muito a pilastra do peleguismo representada pela intervenção do Estado na organização do Sindicato.

De fato, este preceito legal ao estatuir que “a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical” avançou de forma decidida em direção ao sindicalismo moderno das democracias européias, que se estrutura com fulcro na Convenção 87 da OIT.

Sob este enfoque a proposta de reforma sindical maliciosamente ignora que é perfeitamente possível conciliar a representatividade que se espera das entidades sindicais com o pluralismo sindical pleno, estabelecido pela Convenção 87 da OIT.

Para isto seriam necessárias duas providências básicas, lamentavelmente sequer debatidas pelo “Fórum Nacional do Trabalho”

Primeiramente, a regulamentação do inciso I do artigo 7.º da Constituição Federal, que protege o trabalhador contra as chamadas despedidas arbitrárias, construindo antídoto jurídico eficaz contra atos anti-sindicais praticados pelos empregadores que engendrassem “sindicatos marrons” atrelados aos interesses patronais para “concorrer” com os sindicatos combativos.

Razoavelmente protegido contra o fantasma do desemprego representado pela despedida arbitrária, o trabalhador teria meios para não se intimidar contra atos de força representados pelo constrangimento à sindicalização no sindicato subserviente aos interesses patronais.

Em segundo lugar, acabar com o paternalismo mantido com a proposta desta espúria reforma sindical, de estender àqueles trabalhadores não associados às entidades sindicais as conquistas amealhadas por ela.

Com os olhos fitos numa polpuda “contribuição negocial”, que se partilhará entre Sindicatos, Federações, Confederações, Centrais Sindicais e a própria União, através de um “Fundo Solidário da Promoção Sindical”, compulsória para todos os “beneficiados” com a negociação coletiva, associados ou não, a Reforma Sindical desconsidera uma verdade consagrada em todos os países que adotaram o pluralismo sindical sem subterfúgios: a melhor providência contra a entidade sindical não representativa é deixá-la perecer à própria míngua da inexistência de associados decorrente da falta de conquistas, com a possibilidade de migração destes para os sindicatos realmente combativos e re-presentativos.

Ao contrário, elegeu a contribuição negocial como pilastra substituta da velha contribuição sindical (inclusive concebendo-a de forma potencialmente muito mais onerosa que esta). Fê-la compulsória para associados e não associados com possibilidade de oposição, pelo não associado, apenas e tão somente por ocasião da Assembléia Geral instituidora, geralmente convocada e realizada na calada da noite, na boa tradição do sindicalismo pelego. E justificou a sua existência desta forma com a manutenção da prática paternalista que “estende” as vantagens conquistadas através da negociação ao empregado não sindicalizado.

Diante deste quadro, represada a via natural de aferimento e comprovação da legítima representatividade de cada entidade sindical, esta passa a ser controlada com punhos de ferro pelo Ministério do Trabalho através de mecanismos muito mais requintados do que os concebidos pelo velho Mussolini em sua Carta de Lavoro.

Sucedânea da unicidade sindical é a “exclusividade de representação” outorgada ao sindicato que adapte seus estatutos às rígidas diretrizes da lei e consiga obter número de associados equivalente a 20% da categoria representada, a juízo da Secretaria das Relações de Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, notoriamente desaparelhado para as elevadas digressões estatísticas que lhe serão atribuídas.

Pluralismo, só para as entidades sindicais criadas após o advento da reforma e para as anteriores que não adequarem seus estatutos ou não alcançarem a chamada “representatividade comprovada”, mas garantirem sua sobrevivência atrelando-se a uma central sindical.

A ingerência do Ministério do Trabalho é tamanha, num autêntico retrocesso em relação aos avanços obtidos com o advento da Constituição Federal de 1988, que nem mesmo as chamadas categorias diferenciadas poderão prosseguir organizadas em sindicatos.

Isto porque o Fórum Nacional do Trabalho limita tal organização a “critérios de enquadramento por setor econômico e ramo de atividade econômica” desde que “propostos pelo Conselho Nacional de Relações de Trabalho e aprovados por ato do Poder Executivo”. Trata-se de indisfarçada ressurreição da vetusta e pouco saudosa Comissão de Enquadramento Sindical, com limites ainda mais estreitos que os concebidos na vigência da Constituição Polaca de 1937!

Como se vê, a ingerência atribuída ao Estado na organização sindical, longe de ser a única fórmula de acabar com a existência daqueles “sindicatos nanicos”, não representativos, constitui lamentável retrocesso que acentua a subserviência dos dirigentes sindicais em relação ao Estado, na medida em que os coloca de joelhos perante o Ministério do Trabalho, a implorar a necessária condescendência para sua própria sobrevivência.

Tamanha dependência entre as entidades sindicais e o Estado não só coloca o Brasil na contra-mão da liberdade e da autonomia sindicais, aceitas em maior ou menor grau por nada menos do que 187 países até 04.05.03, como ainda pavimenta o caminho da reforma trabalhista, preconizando verdadeira trituração dos minguados direitos ainda amealhados pelo trabalhador brasileiro, afastada a possibilidade de sobrevivência da entidade sindical que resista aos escusos interesses do Estado, que vem se revelando tão lamentavelmente receptivos ao capital financeiro internacional.

Valdyr Perrini

é advogado trabalhista, professor de Direito do Trabalho da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e vice-presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Superior de Curitiba e da Região Metropolitana e membro do Conselho Fiscal do Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional.

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