Celso Spitzcovsky

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A questão relacionada à reeleição está disciplinada no art. 14, § 5.º, da Constituição Federal, nos seguintes termos: ?O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subseqüente?.

A redação reproduzida foi estabelecida pela Emenda Constitucional n.º 16, de 4 de junho de 1997, já no final do primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

Curioso observar que o momento limite para a sua aprovação, em vista do calendário eleitoral e da maioria construída no Congresso Nacional, tinha que ser aquele, sob pena de não se conseguir viabilizar a tentativa do nosso alcaide de obtenção de um segundo mandato.

A promulgação da Emenda Constitucional não tardou a se verificar, inclusive envolta em muitas suspeitas de compra de votos que jamais restaram efetivamente comprovadas.

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De toda sorte, passados exatos 10 anos de sua aprovação, verificam-se, com extrema facilidade, as incongruências e os grandes absurdos resultantes da redação atabalhoada conferida a esse dispositivo constitucional, a começar pela desnecessidade de renúncia para se concorrer a uma reeleição.

Com efeito, a falta de lógica desta prescrição, para se dizer o mínimo, resulta cristalina se comparada com a redação oferecida pelo § 6.º do mesmo dispositivo, que preconiza a necessidade de renúncia para as autoridades ali relacionadas que pretenderem se candidatar a outros cargos. Confira-se: ?Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito?.

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O objetivo desse comando constitucional é intuitivo. O que se pretende é evitar o uso da máquina administrativa por parte dessas autoridades de modo a promover um desequilíbrio nas eleições.

Ora, nesse contexto, é de se indagar: se a necessidade de renúncia surge para evitar o uso da máquina administrativa pelas autoridades ali relacionadas para concorrerem a outros cargos, o que dizer, então, para aquelas que concorrem a uma reeleição?

A falta de lógica revela-se inequívoca, pois aquele que concorre à reeleição terá um nível de exposição na mídia muito maior do que os seus adversários, promovendo desequilíbrio de oportunidades no pleito eleitoral.

De resto, não por acaso, a Lei n.º 9.504/97, que regula todo procedimento eleitoral, prescreve regras vedando a prática de condutas pelos agentes públicos que possam comprometer a lisura das eleições, como a inauguração de obras e a veiculação de propagandas institucionais (art. 73).

Aliás, exatamente por força do perfil que lhe emprestou a Constituição é que, desde a sua implantação, o instituto da reeleição permitiu o acesso dos detentores do poder a um segundo mandato, tanto em 1998 quanto em 2006, viabilizando exatamente o que se procurou evitar: a perpetuação no poder.

De outra parte, não fossem suficientes os pecados cometidos com a atual redação desse comando constitucional, cumpre observar que, por força dela, se anunciam enormes problemas para as próximas eleições.

Destarte, em conseqüência dessa atabalhoada redação, verifica-se que a inelegibilidade atinge não só as autoridades ali relacionadas mas também aquelas que as tiverem substituído ou sucedido no curso dos mandatos.

Trata-se de um verdadeiro absurdo, posto que, como se sabe, a reeleição só se aplica para aqueles que titularizam cargos públicos por meio de eleição ou de sucessão, esta última por força da vacância do cargo, consoante se verifica da leitura do art. 79 da Constituição Federal.

Nesse contexto, resulta clara a impossibilidade de a inelegibilidade atingir aqueles que, no curso do mandato, simplesmente substituíram, posto que não titularizaram cargo algum.

De toda sorte, ao se proceder a uma interpretação literal do dispositivo constitucional, essas autoridades também estariam atingidas pela inelegibilidade, o que não se pode admitir.

Assim, um vice-prefeito que, em um segundo mandato, tenha substituído o Prefeito por razões de doença ou viagem, independentemente do período de duração, por essa linha interpretativa, estaria inelegível para as próximas eleições.

Essa tormentosa questão foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n.º 366.488/SP, relatado pelo Min. Carlos Velloso, no qual se discutiu a viabilidade da candidatura de Geraldo Alckmin ao Governo do Estado de São Paulo em 2002, por ter ele inúmeras vezes substituído o então Governador Mário Covas até o momento em que, em razão de seu óbito, acabou por sucedê-lo.

Naquele momento, no recurso extraordinário interposto contra aquela candidatura, apregoava-se a necessidade de se evitar qualquer espécie de conclusão que fosse contra as próprias vedações estabelecidas pela Constituição no art. 14, § 5.º, na medida em que o que foi por ela proibido não poderia ser permitido por qualquer interpretação.

De resto, essa linha de raciocínio procurou lastro em voto proferido pelo Min. Ilmar Galvão no RE n. 157.959/RJ, Plenário, DJU de 3/6/1994.

De outra parte, alegava-se ofensa à razoabilidade e à proporcionalidade, dado que, se o então Vice-Governador não poderia candidatar-se mais uma vez ao mesmo cargo que tem como função típica substituir ou suceder o Governador em seus impedimentos e faltas, não poderia, também, candidatar-se ao cargo de Governador, pelo fato de que, simplesmente, quem não pode o menos não pode o mais.

Naquela oportunidade, contrariando a letra da Constituição, ficou estabelecido que o instituto da reeleição não pode ser negado a quem só precariamente tenha substituído o titular no curso do mandato, pois o Vice não exerce o Governo em sua plenitude.

A reeleição deve ser interpretada stricto sensu, significando eleição para o mesmo cargo. O texto constitucional não proíbe a candidatura daquele que tenha substituído precariamente o titular do cargo, uma vez que o exercício pleno do mandato somente se dá por eleição ou sucessão, como visto. Dessa forma, certo, pois, que, no contexto do dispositivo, o vocábulo reeleição revela-se impróprio no tocante ao substituto, posto que jamais se fez titular do cargo.

De se observar, pois, que, na interpretação levada a efeito por nossa Suprema Corte, teve ela que simplesmente ignorar a letra do dispositivo constitucional para, levando em consideração o seu aspecto teleológico, demonstrar o absurdo e os inconvenientes que traria àqueles que viessem, temporariamente, a substituir as autoridades ali relacionadas.

Tivesse sido outro o entendimento da Suprema Corte naquele momento e estaria criado um impasse institucional na medida em que, com certeza, nenhum Vice iria substituir para não perder a possibilidade de candidatura no pleito eleitoral seguinte.

Em vista da proximidade do pleito eleitoral de 2008 e levando-se em consideração as alterações verificadas na composição de nossa Suprema Corte, desde aquele julgamento, espera-se que a interpretação naquele momento oferecida ao conteúdo do art. 14, § 5.º, seja mantida, até mesmo para a preservação do princípio da segurança jurídica.

Com efeito, não se pode descurar para o fato de que uma mudança de rumo poderia também implicar agressão ao disposto no art. 16 do Texto Constitucional, que preconiza como data limite para a mudança das regras relacionadas ao processo eleitoral um ano antes da realização do pleito.

Celso Spitzcovsky é advogado e professor no Complexo Jurídico Damásio de Jesus (CJDJ).