Reação de Zaffaroni ao Direito penal do inimigo

O debate sobre o denominado Direito penal do inimigo só está começando. Frente a ele já reagiu o mestre Zaffaroni (em conferência pronunciada na sede do IELF em São Paulo, no dia 14 de agosto de 2004) sublinhando o que segue: (a) para dominar o poder dominante tem que ter estrutura e ser detentor do poder punitivo; (b) quando o poder não conta com limites, transforma-se em Estado de polícia (que se opõe, claro, ao Estado de Direito); (c) o sistema penal, para que seja exercido permanentemente, sempre está procurando um inimigo (o poder político é o poder de defesa contra os inimigos); (d) o Estado, num determinado momento, passou a dizer que vítima era ele (com isso neutralizou a verdadeira vítima do delito); (e) seus primeiros inimigos foram os hereges, os feiticeiros, os curandeiros etc.; (f) em nome de cristo começaram a queimar os inimigos; (g) para inventar uma “cruzada” penal ou uma “guerra” deve-se antes inventar um inimigo (Bush antes de inventar a guerra contra o Iraque inventou um inimigo: Sadam Hussein); (h) quando a burguesia chega ao poder adota o racismo como novo satã; (i) conta para isso com apoio da ciência médica (Lombroso, sobretudo); (j) o criminoso é um ser inferior, um animal selvagem, pouco evoluído; (l) durante a revolução industrial não desaparece (ao contrário, incrementa-se) a divisão de classes: riqueza e miséria continuam tendo que se conviver necessariamente; (m) para se controlar os pobres e miseráveis cria-se uma nova instituição: a polícia (que nasceu, como se vê, para controlar os miseráveis e seus delitos); inimigo (do Estado de Polícia) desde essa época é o marginalizado; (n) na Idade Média o processo era secreto e o suplício do condenado era público; a partir da Revolução francesa público é o processo, o castigo passa a ser secreto; (o) no princípio do século XX a fonte do inimigo passa a ser a degeneração da raça; (p) nascem nesse período vários movimentos autoritários (nazismo, fascismo etc.); (q) o nazismo exerceu seu poder sem leis justas (criaram, portanto, um sistema penal paralelo); (r) no final do século XX o centro do poder se consolida nas mãos dos E.U.A., sobretudo a partir da queda do muro de Berlim; o inimigo nesse período foi o comunismo e o comunista; isso ficou patente nas várias doutrinas de segurança nacional; (s) até 1980 os E.U.A. contava com estatísticas penais e penitenciárias iguais às de outros países; (t) com Reagan começa a indústria da prisionização; (u) hoje os E.U.A. contam com cerca de 5 milhões e 300 mil presos; seis milhões de pessoas estão trabalhando no sistema penitenciário americano; isso significa que pelo menos dezoito milhões de pessoas vivem às custas desse sistema; com isso o índice de desemprego foi reduzido. E como os E.U.A. podem sustentar todo esse aparato prisional? Eles contam com a “máquina de rodar dólares”; os países da América Latina não podem fazer a mesma coisa que os E.U.A.: não possuem a máquina de fazer dólares; (v) o Direito penal na atualidade é puro discurso, é promocional e emocional: fundamental sempre é projetar a dor da vítima (especialmente nos canais de TV); (x) das TVs é preciso “sair sangue” (com anúncios de guerras, mortos, cadáveres etc.); (z) difunde-se o terror e o terrorista passa a ser o novo inimigo; (aa) a população está aterrorizada; a difusão do medo é fundamental para o exercício do poder punitivo; (bb) o Direito penal surge como solução para aniquilar o inimigo; (cc) o político apresenta o Direito penal como o primeiro remédio para isso; (dd) o Direito penal tornou-se um produto de mercado; (ee) o Direito penal na atualidade não tem discurso acadêmico, é puro discurso publicitário, é pura propaganda; é a mídia que domina o Estado, não o Estado que se sobrepõe a ela; (ff) os juízes estão apavorados; juiz garantista tem que enfrentar a mídia.

De tudo quando foi resenhado em relação ao pensamento de Zaffaroni, pode-se concluir: desde 1980, especialmente nos E.U.A., o sistema penal vem sendo utilizado para encher os presídios. Isso se coaduna com a política econômica neoliberal. Cabe considerar que desde essa época vem se difundindo o fenômeno da privatização dos presídios. Quem constrói ou administra presídios precisa de presos (para assegurar remuneração aos investimentos feitos). Considerando-se a dificuldade de se encarcerar gente das classes mais bem posicionadas, incrementou-se a incidência do sistema penal sobre os excluídos. O Direito penal da era da globalização caracteriza-se (sobretudo) pela prisionização em massa dos marginalizados.

Os velhos inimigos do sistema penal e do Estado de Polícia (os pobres, marginalizados etc.) constituem sempre um “exército de reserva”: são eles os encarcerados. Nunca haviam cumprido nenhuma função econômica (não são consumidores, não são empregadores, não são geradores de impostos). Mas isso tudo agora está ganhando nova dimensão. A presença massiva de pobres e marginalizados nas cadeias gera a construção de mais presídios privados, mais renda para seus exploradores, movimenta a economia, dá empregos, estabiliza a índice de desempregado etc. Os pobres e marginalizados finalmente passaram a cumprir uma função econômica: a presença deles na cadeia gera dinheiro, gera emprego etc..

Como o sistema penal funciona seletivamente (teoria do labelling approach), consegue-se facilmente alimentar os cárceres com esse “exército” de excluídos. Em lugar de ficarem jogados pelas calçadas e ruas, economicamente, tornou-se útil o encarceramento deles. Com isso também se alcança o efeito colateral de se suavizar a feiúra das cidades latinoamericanas, cujo ambiente arquitônico-urbanístico está repleto de esfarrapados e maltrapilhos. Atenua-se o mal estar que eles “causam” e transmite-se a sensação de “limpeza” e de “segurança”. O movimento “tolerância zero” (que significa tolerância zero contra os marginalizados, pobres etc.) é manifestação fidedigna desse sistema penal seletivo. Optou claramente pelos pobres, eliminando-lhes a liberdade de locomoção. Quem antes não tinha (mesmo) lugar para ir, agora já sabe o seu destino: o cárcere. Pelo menos agora os pobres cumprem uma função sócio-econômica! Finalmente (a elite político-econômica) descobriu uma função para eles.

Luiz Flávio Gomes

é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e diretor-presidente da TV Educativa IELF (1.ª Rede de Ensino Jurídico Telepresencial da América Latina com cursos ao vivo em SP e transmissão em tempo real para todo país –
www.ielf.com.br

Voltar ao topo