Quem sabe um dia, a cidadania (*)

Sem qualquer dúvida, nossa TV é o reflexo da sociedade. O programa que mostra a miséria do seu João, cujo filho foi assassinado por estar envolvido com drogas, faz o mesmo que a agência bancária que deixa o seu José infindáveis horas na fila para ver a cor do seu próprio dinheiro; o motorista que com falsas arrancadas ameaça Pedro, que está no meio da travessia da rua; o jogador que após um gol faz gestos obscenos para a própria torcida de Manés que antes o havia vaiado; ou ainda o vereador que propõe o nome do agiota Sacanildo Maldoso para a praça do bairro em vez do de Maria Juá, antiga parteira local.

Em todos os casos, há a autorização implícita das vítimas para a livre ação de seus algozes. Aprova-se o direito de quem a pratica, reconhece-se que os agentes apenas exercem suas prerrogativas. A fila é necessária porque é impossível atender a todos ao mesmo tempo. O pedestre precisa que o alertem para que não atrapalhe o bom fluxo do trânsito. O jogador nada mais faz que pagar a quem o assiste com a mesma moeda. O vereador só exerce o seu direito legal. Portanto, nada mais normal que o apresentador do programa televisivo devassar a intimidade do seu João (a questão diz respeito a toda à sociedade, que tem o direito a todos os detalhes). Tudo muito óbvio. A única forma de mudar isso tudo seria o seu José virar banqueiro, o Pedro comprar um carro, os Manés aprenderem a jogar futebol, a Maria Juá nascer de novo e ser eleita. E o seu João estrelar um programa na TV.  Será ?

E se os milhões de Josés começassem a boicotar os bancos que os tratam como párias ou simplesmente a fazer valer a lei que já existe sobre o limite de tempo em filas? E se Pedro lembrasse ao motorista apressadinho que ameaçar pedestre com veículo é crime (infração gravíssima pelo CTB)? E se os Manés mostrassem ao egocêntrico jogador que se não houvesse torcida ele estaria desempregado e que a única resposta decente a ela se dá jogando bola? E se a população desse um sonoro chute legal no traseiro adiposo do nobre edil, e na próxima eleição escolhesse alguém que realmente a representasse?

Se isso tudo acontecesse, certamente não haveria mais seus Joões com a vida escancarada na TV, pois eles saberiam ter o direito legal de salvaguardar sua intimidade. Também não haveria público, que estaria mais interessado em discussões sérias sobre o problema do que em alimentar um circo de horrores. E quem quisesse se debruçar sobre as misérias humanas em forma de drama teria sempre à mão material muito mais interessante num Nelson Rodrigues, Shakespeare, Plínio Marcos, Sófocles, Dalton Trevisan…

(*Ou : Se um operário virou presidente por que eu não posso fazer valerem os meus direitos mais básicos ? )

Douglas de Souza (douglas@pron.com.br) é editor de Cidades e do Caderno de TV de O Estado.

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