Quanto vale um medo?

Afirma Giovanni Berlinguer, professor de Medicina do Trabalho da Universidade de Roma, que “foram escritas muitas histórias da medicina, mas poucas das doenças, como se as doenças (tumores, tuberculose, miopia, artrose, etc…) fossem eternas companheiras do homem, em todas as épocas e em todas as condições sociais”. Afirma, ainda, a necessidade de compreender que cada doença tem uma história própria e que dependem fundamentalmente da organização social e, que “são diferentes segundo as épocas, as regiões, os estratos sociais” e o ambiente de vida e trabalho.

Reconhecidamente a relação saúde/doença depende não só dos pressupostos elencados por Berlinguer, mas outros poderão ser acrescentados, como o ambiente, o tempo e o ritmo do trabalho. Todos eles podem ou não estar presentes no cotidiano das pessoas e serem mais ou menos agressivos à saúde humana, dependendo da política desenvolvida pelo Estado, cabendo a ele legislar e fiscalizar.

Essa preocupação, muito mais por pressão popular que por iniciativa própria, tiveram os constituintes de 88, que não só inseriram na Constituição Federal que a saúde é um direito fundamental da pessoa humana, mas também conceituaram saúde de uma maneira abrangente, incluindo as condições do trabalho como resultante de doenças.

O estado de bem-estar social, política que vinha sendo construída até recentemente, passou a ser questionada (não é a razão deste texto). Entendem que não cabe ao Estado determinadas funções, pelo menos na abrangência que vinha tendo, como o atendimento universal à educação, saúde – no caso específico à saúde do trabalhador – assistência social, aposentadorias, etc. Neste discurso contestador liberal não pode, também, o Estado interferir nas relações de trabalho e, por isso, é preciso flexibilizar tudo, inclusive a CLT. Portanto, deve o Estado abrir mão do seguro acidente do trabalho, cabendo ao setor privado o atendimento.

Em nome dessa nova política – do Estado mínimo e da redução do chamado custo Brasil – o olhar que nunca esteve sobre o trabalhador e o ambiente de trabalho recai agora única e exclusivamente sobre a produção, o mercado e o lucro. Em nome deles – cria-se o Estado de obstáculo social – intensifica-se a redução de direitos, inclusive o de trabalhar (intensa redução de empregos com sobrecarga para os que permanecem no trabalho). Passa-se a exigir, para quem trabalha, uma excessiva carga de trabalho, predispondo ao estresse, acidentes e doenças do trabalho. Além da excessiva carga de trabalho, os trabalhadores são expostos e submetidos a novos produtos e tecnologias causando o aparecimento de novas patologias sem um efetivo combate das antigas.

Com o Estado ausente ou conivente, com novos métodos e tecnologias, portanto nova organização e relação do trabalho, muitas empresas têm feito do local de trabalho um espaço de destruição de vidas. Veja o exemplo dos bancos: muito lucro, muita repressão e trauma sobre os trabalhadores e um dos espaços onde tem o maior número de doentes do trabalho por Lesões de Esforço Repetitivo (LER) e Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho (DORT). Assim, o trabalho e o seu ambiente, que deveria ser prazeroso, se transformou em um local de dilaceração e sofrimento. Dilacera-se e traumatiza-se tanto o espírito como o corpo. E esse trauma, a morte, a dor e o medo embutido, segundo o modelo neoliberal, não é problema do Estado, mas sim deve ser regulado e resolvido pelo mercado.

Nesse mercado tudo tem preço, e pela concorrência deve ser flutuante, assim perguntamos: quanto vale um dedo ou uma falange?; e se for a mão ou o braço?; mais valor tem uma perna, ou as duas?; qual o preço de uma cabeça, não a quebrada, mas aquela que “pirou” pelo trabalho?; e a quebrada, que assim como a outra, teve a vida arrancada? É o mercado que vai decidir? É o leilão entre as seguradoras para ver quem cobra menos do empresário/patrão para assegurar a vida e partes do corpo do trabalhador, e se possível – afinal é o lucro que manda – no futuro não pagar nada.

Quando se fala em vida – acidentes e doenças de trabalho – devemos ir além da fria estatística de mortes e lesionados. Cada acidente é uma família com preocupações e problemas (uns mais, outros menos graves) de ordem econômica, emotiva e social, com o conseqüente reflexo na sociedade. São homens e mulheres que trabalham – na sua grande maioria não constróem riquezas pessoais (apenas sobrevivem) – construindo a riqueza do País. E sempre é a essa classe trabalhadora que governantes apelam nos períodos de dificuldades econômicas do País. Em princípio são os trabalhadores “vítimas dos sacrifícios necessários para permitir o crescimento da economia, e em um segundo momento, agora, vítimas de sacrifícios necessários para superar as dificuldades da fase involutiva” . 

Para que a classe trabalhadora não continue sendo vítimas de sacrifícios é necessário, antes de tudo, que a própria classe se organize e conquiste um Estado com capacidade de disciplinar legalmente as relações e o ambiente de trabalho com o objetivo de preservar a vida e a saúde. Se ambas estão ameaçadas – como estão -não é o mercado que vai defendê-las ou recuperá-las e sim os próprios trabalhadores e trabalhadoras.

Convido a todos e a todas à vida, portanto, à árdua luta. E uma tarefas é fazer com que o ambiente de trabalho não seja o local da dor e da morte, mas, caso isso ocorra, que o Estado seja o responsável pelo Seguro Acidente do Trabalho.

* Dr. Rosinha, Florisvaldo Fier

(PT), é deputado federal, pediatra e sanitarista.

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