Qual a medida da interpretação para o julgamento por órgãos supranacionais?

Como tendência decorrente de um processo irrefutável de globalização, a União Européia é uma criação exuberante, uma verdadeira demonstração de como diversos países de natureza tão divergente podem se coadunar e cooperar de forma a produzir uma melhor integração social e jurídica. Mas nem por isso está longe de ter problemas que se tornaram a dor de cabeça dos países componentes dessa coletividade.

No campo do Direito Penal esses problemas saltam aos olhos. É verdade que uma uniformização característica de um processo regionalizante trouxe diversos benefícios. A quebra de fronteiras permitiu uma maior dinâmica nos processos judiciais e a melhor cooperação entre os países componentes. A criação de órgãos jurisdicionais com competência dentro de todo o bloco permitiu, além da uniformização, a mais ampla troca de conhecimento jurídico já vista na Europa. E a conseqüência mais importante: a proteção dos direitos do homem. A Corte Européia dos Direitos do Homem é um marco no direito mundial. Finalmente os países passam um mínimo de sua soberania para outros órgãos, permitindo um controle eficiente de suas instituições e coibindo os abusos cometidos. Nesse sentido existem diversos julgados dessa Corte Européia, dos quais tomamos como exemplos o caso “Çicek contra TURQUIA”, no qual foram encontradas violações aos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 13 e 14 da Convenção Européia dos Direitos do Homem(1), e no caso “Tanli contra TURQUIA”, localizando quebras dos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 13, 14 e 18 do mesmo documento(2), os dois exemplos bastante recentes.

Mas nem tudo são flores. Deixando de lado o fato de que uma análise mais aprofundada vai certamente revelar o porquê da coincidente mesma origem dos dois julgados aqui mencionados (afinal a Turquia sempre foi considerada um dos primos pobres da Europa), outro fato deve ser bem estudado. A grande dúvida é exatamente: como coadunar sistemas penais tão diferentes e complexos de forma a garantir uma uniformização de aplicação de leis e parâmetros? Como entender de uma só forma uma lei (tenha ela o caráter que tiver – seja um princípio ou uma norma específica) que só pode ser entendida dentro da realidade em que foi construída? Ou, com mais clareza: qual o critério de interpretação a ser usado por um ente supranacional quando da verificação de uma lei, instituto ou procedimento penal dentro de um país em específico?

Parece indiscutível que as leis de uma nação são por elas construídas a partir do seu “espírito”. Aliás, isso é do próprio princípio democrático. Indiscutível, também, que o julgador nacional leva em conta a realidade social, institucional e legal do país em que atua para aplicar a lei. Assim, como pode uma autoridade exterior julgar a aplicação da lei e os princípios jurídicos de um país estando completamente deslocado da sua realidade?

Os casos apresentados são, é claro, limítrofes. Dizem respeito a abusos cometidos pela polícia turca quando da realização de prisões, terminando com a morte dos supostos criminosos. Apenas para que melhor nos localizemos, partamos do pressuposto de que a realidade turca é bastante próxima da realidade brasileira (a leitura dos julgados apresentados nos traz a sensação de que já vimos esse filme com legenda em português). Imaginemos a dificuldade de um juiz inglês, habituado com uma polícia que pede licença antes de qualquer abordagem, sorri, agradece e não usa armas, em entender a truculência necessária a uma abordagem a traficantes de drogas nos subúrbios das cidades turcas (ou brasileiras). Entenda-se: não se quer justificar o uso de força abusivo por parte da polícia. Mas não se pode acreditar que um policial turco (ou brasileiro) consiga realizar uma revista em delinqüentes (os europeus gostam bastante desse termo) como conseguiria fazer um policial inglês.

Essa é a dúvida que se põe: como interpretar de uma mesma forma os institutos que são entendidos de forma diferente pelos seus súditos? Quando se fala do direito à vida do artigo 2.º da Convenção Européia dos Direitos do Homem a situação toda fica mais simples. Mas se levarmos em conta situações mais complexas, onde a determinação dos bens jurídicos parece mais enevoada e duvidosa, a interpretação sem dúvida será mais trabalhosa e problemática. Por exemplo: até a pouco tempo atrás, a lei penal francesa estabelecia a inversão do ônus da prova nos casos dos crimes de proxenetismo e auxílio à prostituição. O artigo 225-6, 3.º, do Código Penal Francês(3) punia quem não pudesse comprovar suas fontes de renda e se relacionasse com alguém que praticasse a prostituição (4). Ou seja, nesses casos o interesse público de impedir o alargamento da prostituição seria mais importante do que o dever do ministério público francês de provar a alegação de que determinada pessoa favorece a prostituição. Joga-se ao acusado o dever de provar que não é culpado da imputação que lhe é feita – mesmo levando-se em conta a hipossuficiência da parte acusada.

No caso, fica clara a superveniência do interesse público sobre o interesse privado. E daí que, se existe essa forma de pensamento dentro do direito penal francês, seria bastante normal que um juiz francês, analisando um caso de outro país da União Européia, pudesse olhar com critérios publicistas uma realidade que no país de origem fosse entendida com caráter mais individualista. É verdade que a realidade social européia é relativamente homogênea, o que facilita a aplicação de um “direito controlador” a partir de uma análise reticular das garantias que são oferecidas dentro de cada país componente da comunidade. Mas a situação parece não ser assim tão simples quando aumentamos o número de países sob a égide de um Tribunal Internacional Penal, por exemplo. Afinal, ninguém duvida que a realidade social africana e latina é substancialmente diversa das condições imperantes na Europa ou na América do Norte. Parece que toda essa construção pode dar margem, inclusive, a uma necessária revisão do conceito de “erro de direito” no Direito Penal.

Assim, fica a dúvida: quais os critérios de interpretação a serem usados por uma Corte Internacional, tal como a Corte Européia dos Direitos do Homem? Quais os limites dessa interpretação? Que hermenêutica adotar para interpretar a lei penal com vistas à proteção dos Direitos Humanos? Este humilde trabalho limita-se apenas a propor essas questões, mas não ousaremos respondê-las.

NOTAS

(1) “ARRÊT DANS L’AFFAIRE ÇIÇEK c. TURQUIE. Par un arrêt communiqué aujourd’hui par écrit dans l’affaire Çiçek c. Turquie, la Cour européenne des Droits de l’Homme dit: par six voix contre une, qu’il y a eu violation de l’article 2 (droit à la vie) de la Convention européenne des Droits de l’Homme quant aux fils de la requérante; à l’unanimité, qu’il n’y a pas eu violation de l’article 3 (interdiction de la torture et des peines ou traitements inhumains ou dégradants) quant aux fils de la requérante; à l’unanimité, qu’il y a eu violation de l’article 5 (droit à la liberté et à la sûreté) quant aux fils de la requérante; à l’unanimité, qu’il y a eu violation de l’article 3 quant à la requérante; par six voix contre une, qu’il y a eu violation de l’article 13 (droit à un recours effectif) quant à la requérante; à l’unanimité, qu’il n’y a pas eu violation de l’article 14 (interdiction de toute discrimination) combiné avec les articles 2, 3, 5 et 13 de la Convention; à l’unanimité, qu’il n’y a pas lieu d’examiner le grief tiré de l’article 18 (limitation de l’usage des restrictions aux droits); à l’unanimité, qu’il n’y a pas eu de violation de la Convention quant au petit-fils de la requérante. En application de l’article 41 (satisfaction équitable) de la Convention, la Cour, par six voix contre une, décide d’octroyer aux héritiers des fils de la requérante 10 000 livres sterling (GBP) pour dommage matériel et 40 0000 GBP pour dommage moral et alloue à la requérante 10 000 GBP pour dommage moral et, à l’unanimité, 10 000 GBP à la requérante pour frais et dépens”.

(2) “ARRÊT DANS L’AFFAIRE TANLI c. TURQUIE. La Cour européenne des Droits de l’Homme a communiqué ce jour par écrit son arrêt dans l’affaire Tanli c. Turquie (n$ 26129/95). Elle y juge: par six voix contre une, que le gouvernement turc est responsable du décès de Mahmut Tanli et qu’il a ainsi violé l’article 2 (droit à la vie) de la Convention européenne des Droits de l’Homme; à l’unanimité, qu’il y a eu violation de l’article 2 de la Convention en ce que les autorités turques sont restées en défaut de mener une enquête effective au sujet des circonstances du décès de Mahmut Tanli; à l’unanimité, qu’il n’y a pas eu violation de l’article 3 (interdiction de la torture); à l’unanimité, qu’il n’y a pas eu violation de l’article 5 (droit à la liberté et à la sûreté); par six voix contre une, qu’il y a eu violation de l’article 13 (droit à un recours effectif); à l’unanimité, qu’il n’y a pas eu violation de l’article 14 (interdiction de la discrimination) ni de l’article 18 (limitation de l’usage des restrictions aux droits). Au titre de l’article 41 (satisfaction équitable), la Cour alloue au requérant 10 000 livres sterling (GBP) pour dommage moral (six voix contre une) et 9 760 GBP pour frais et dépens (unanimité). Elle lui accorde également 38 754,77 GBP pour dommage matériel et 20 000 GBP pour dommage moral, sommes qui seront détenues par le requérant pour la veuve et l’enfant de son fils (six voix contre une)”.

(3) “Art. 225-6 Est assimilé au proxénétisme et puni des peines prévues pas l’article 225-5 le fait, par quiconque, de quelque manière que ce soit:

(…)

3º De ne pouvoir justifier de ressources correspondant à son train de vie tout en vivant avec une personne qui se livre habituellement à la prostitution ou tout en étant en relations habituelles avec une ou plusieurs personnes se livrant à la prostitution;”, do Código Penal Francês em vigor até o ano 2000.

(4) Esclareça-se que a Corte Européia dos Direitos do Homem julgou esse dispositivo legal em perfeita conformidade com a Convenção Européia dos Direitos do Homem, a partir de uma análise ampla do Direito francês e das garantias que o mesmo oferece ao cidadão.

Rui Carlo Dissenha

é advogado, mestrando em Direito Penal pela UFPR, Diplôme Supérieur de l’Université pela Université Paris II – França (especialização).

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